Quem leia crónicas e críticas sobre o que se pensava do fado nas décadas de 20 e 30 do século passado, intui – mesmo que pouco saiba do assunto – que deve ter acontecido um milagre muito grande para que, em tão poucos anos, o Fado alcançasse o lugar que alcançou na vida de muitos de nós. Esse milagre aconteceu. Chamou-se Amália. E tudo mudou porque ela existiu. Poderíamos olhar para Amália de muitos outros ângulos, mas hoje, escolhi vê-la através das palavras que cantou, das palavras que escreveu, das palavras que inspirou. Das palavras que passaram a ser fado por seu convite, por sua intuição, por sua natureza e angústia.
Muito cedo, Amália sentiu que o seu canto não podia ter amarras. E mostra-nos isso quando decide cantar “As penas”, que lê num jornal qualquer, penas que estavam erroneamente atribuídas a Guerra Junqueiro. Torna a mostrar-nos nos versos de Pedro Homem de Melo que escolhe cantar em melodias tradicionais: “Grande, grande era a cidade/ e ninguém me conhecia”. Mostra-nos isso com maior tristeza na angústia dos versos que escreve, rimados e metrificados para casarem com as melodias que conhecia de Alfredo Marceneiro ou de José António Sabrosa
A chegada de Alain Oullman com a joia rara que é “Vagamundo” de Luis de Macedo evidencia isso de que Amália andara sempre à procura. As palavras de que o fado se socorria já não lhe chegavam. Amália queria palavras que se inscrevessem na sua tragédia, palavras que a levassem mais longe ou mais fundo ou mais adiante, não sei dizer bem. E, com Alain como companheiro, deu voz aos versos de Camões, de Régio ou de O’Neill. E com Alain cantou a Alfama de Ary e a de David Mourão Ferreira.
E, com a cumplicidade de Ary e Natália, gravou um extraordinário disco a que sabiamente chamou Cantigas d’Amigos, com versos do rei Dom Diniz e de outros poetas medievais. E os fadistas disseram que cantava letras “à Picasso”! E os intelectuais afirmaram que não era digna de cantar Camões. Amália encolheu os ombros e seguiu o seu caminho.
E é por tudo isso que Amália se fez povo e o seu lamento. Se fez coração e o seu grito. Se fez alma e a sua prece. E por isso brincou com Almada Negreiros, dançou a Gota com Pedro Homem de Melo, naufragou com Cecília de Meireles, aprendeu a amar aves e flores com Sebastião da Gama.
Amália nasceu pela mão dos poetas. Cresceu através das suas palavras. Morreu de cada vez que as disse, de cada vez que as cantou e também de cada vez que não as pôde cantar. E fez tudo isto com aquele olhar que era a um tempo sabedoria, e a outro intuição; um olhar inclusivo onde nunca esqueceu os maravilhosos poetas populares que tanto a tinham emocionado nos primeiros tempos. Até ao fim, cantou os versos de Linhares Barbosa ou de Gabriel de Oliveira. E emprestou a sua voz à maravilhosa poesia do folclore e das marchas de que tanto gostava – “Quem quiser beijinhos, pede-os/ quem não pede é porque é mudo/ vá à rua dos remédios/ que há remédio para tudo”.
E por isso, sabia quando as palavras não tinham a medida certa para o Fado; a medida certa para a sua voz. E por isso, escolhia cantar uns versos do incrível Alberto Janes porque uma rima a tinha divertido: “Mas a verdade nua, sem salamaleque,/ que tive de aprender é que/ ai de mim se não for eu”! Rima brilhante, rara, surpreendente e muito, muito musical!
Este saber que era também sentimento fê-la pressentir cada palavra que cantava como se sua fosse. Fê-la ser o lugar onde mundos aparentemente inconciliáveis viviam na mais insuspeita harmonia. Carecas conviviam com gaivotas. Cochichos assobiavam a Lianores. Caracóis eram servidos à mesa de reis. E tudo era grande naquela voz, mesmo que, na génese pudesse não ser… qualquer palavra… qualquer quadra por mais singela… qualquer soneto camoniano… Tudo se encontrava nesse lugar a que resolvemos chamar Amália pela ânsia que temos de nomear os milagres.
Amália – ou qualquer outro nome que lhe queiramos chamar – depois de conviver tantos anos com as palavras dos poetas – atreveu-se a irromper pelo fado como grande letrista. Já não timidamente como nos tempos dos magníficos “Estranha forma de vida” e “Ai, esta pena de mim”, mas assumindo a escrita de álbuns inteiros e entregando os seus versos à mestria de Fontes Rocha e de Carlos Gonçalves. Desta fase tardia, saíram clássicos como “Lágrima”, “Grito”, “Ai Maria” ou o extraordinário “Lavava no rio lavava” que tem três dos versos mais bonitos da história do Fado: “Já não temos fome, mãe/ mas já não temos também/ o desejo de a não ter”. Só por estes versos, Amália já se incluiria no restrito lote de poetas que entendeu a grandeza desta canção tão pobre, tão coitadinha, tão grande, tão trágica, tão maior do que a vida!
Os poetas de Amália não são só os que ela cantou. Todos os poetas que vieram depois são poetas de Amália na medida em que só puderam existir porque ela abriu um cofre que nunca mais será fechado. E já os fadistas que vieram depois dela tiveram a coragem de cantar as palavras que Amália escolhera e outras… muitas outras… e Sophia chegou ao Fado… e Pessoa chegou ao Fado… e Pascoaes chegou ao Fado… E todos os poetas que virão depois de nós serão poetas de Amália. Porque tudo foi possível a partir dali.
E tudo foi possível porque Amália quis. E tudo é possível nestas palavras porque Amália existe em todos os poetas que andem à procura de palavras para o Fado. Porque agora, todos podemos escrever com a liberdade que quisermos. A liberdade que ela empunhou nas palavras de Manuel Alegre – “Hei-de passar nas cidades/ como o vento nas areias/ e abrir todas as janelas/ e abrir todas as cadeias” ou no famoso “Abandono” de David Mourão Ferreira que a censura não quis deixar passar: “Por teu livre pensamento/ foram-te longe encerrar”.
Essa liberdade que foi voz, que foi palco, que foi música, que foi palavra, que foi um olhar diverso e original sobre o mundo. Essa liberdade que há-de sempre ser o outro nome de Amália. J
*Tiago Torres da Silva é escritor, dramaturgo, encenador e o autor do maior número de letras cantadas por artistas portugueses e brasileiros