Há já mais de três décadas, num pequeno colóquio, Siza apresentou o Bonjour Tristesse de Berlim, como novidade. Os comentários estavam a cargo de Nuno Portas e de Pierluigi Nicolin, já na altura diretor da Lotus International. O conhecido edifício de Berlim foi descrito como um processo controlado em absoluto pela arquitetura, desde a encomenda até ao ponto ómega, e obviamente concebido em articulação com a circunstância da cidade, neste caso uma Berlim em plena reabilitação pós-traumática.
Nicolin contrapôs. Segundo ele, o arquiteto entrava no processo quando tudo estava já pré-estabelecido, com campo de manobra reduzido. A economia, a política, nalguns casos os caprichos do poder, definiam o essencial. O arquiteto dava-lhe forma e estrutura, ou vice-versa. Portas, claro, como não podia deixar de ser, argumentava que o arquiteto é um entre muitos agentes, podia entrar e sair a qualquer momento do processo. Competia-lhe fazer o que sabia e melhorar sempre, mas o processo não lhe pertencia.
Isto foi há mais de três décadas. Dez anos antes, uma obra de Siza tinha ficado incompleta, morrera praticamente à nascença. Criada pela circunstância política, fora também asfixiada pela circunstância política. Refiro-me ao projecto para São Vítor, um bairro da zona oriental do Porto cujos interiores de quarteirão eram quase integralmente preenchidos por bandas de habitação pobre e degradada: as Ilhas. Siza dirigiu uma brigada para intervir nesta área. O trabalho tinha como ponto de partida o entendimento do processo de produção do espaço urbanizado, não para perpetuar o status, mas para perceber qual a melhor maneira de o transformar. Como sempre.
A proposta é ousada, mas determinante abrir os interiores para a rua, dar-lhes o privilégio, que lhes tinha sido negado à partida, de inserção na esfera pública. Esta era uma atitude cujo alcance político poderia ter sido incomensurável, por duas razões essenciais. Primeiro, porque era a própria proposta arquitetónica, ou seja, era a arquitetura ela mesma que subvertia o sentido de classe do espaço organizado. As iniquidades da organização do espaço só se podem combater no terreno da organização do espaço. Segundo, porque fazia da cidade o tecido sobre o qual se pretende reforçar ou alisar as pregas que consubstanciam o problema político.
Uma parte muito significativa do processo dizia respeito à análise histórica das cartas topográficas do século XIX. No afloramento das principais intenções de projeto, sente-se a vontade de manter presente a ideia de ruína, mais propriamente a ruína da circunstância de classe que produziu aquele espaço. Não como trouvaille romântica, que pudesse sublinhar arqueologicamente as curiosidades de outrora, mas antes como matéria que acentuasse ainda mais a emergência da transformação. A alteração da ordem social não deve implicar a alteração brusca da ordem urbana, sobretudo não deve ser confundida com ela. Deve integrar-se na ordem urbana existente, com inteligência e capacidade de adaptação, como sempre aconteceu com a cidade. Portanto, esta ruína viria, de certo modo e por contraste, monumentalizar a nova ordem social.
No meio dos arquivos de São Vítor, ainda no velho escritório da Rua da Alegria, encontrou-se um texto impresso com duas apostilhas manuscritas: uma no início, a prolongar o título Do rigor na ciência, “ou a verdadeira história de S. Victor”; outr,a no fim regista, ‘Fragmento’ da História Universal da Infâmia, de J. L. Borges Porto – 15/6/78».
A parte impressa, que foi reproduzida, diz respeito, na verdade, a um excerto do livro O Fazedor, de Jorge Luis Borges, e faz parte da secção intitulada “Museu”. Aí são referidas as ruínas que perduravam do mapa abandonado à intempérie, um mapa que teve a dimensão do próprio Império e que coincidia pontualmente com ele. A nota manuscrita refere então que se trata da “verdadeira história de S. Vítor”.
E são precisamente as ruínas inacabadas do projecto/mapa para S. Vítor que nós vamos poder reencontrar mais tarde na realidade da Malagueira, de Haia, de Berlim, do Chiado. Nas cidades inacabadas de Siza. J
*José António Bandeirinha é arquiteto, investigador do CES e prof. catedrático de Arquitectura da Un. de Coimbra, de que foi pró-reitor para a Cultura e diretor do Colégio das Artes