Todas íbamos a ser reinas, título da exposição de Sandra Vásquez, é também um indicador de honra para a galeria Esteves de Oliveira, nesta belíssima oportunidade quanto à apresentação do excelente conjunto de peças da autora, após um longo trajecto de pesquisa, entre vários contactos. Esta notável artista chilena vive há muito tempo na Alemanha, tendo sido vencedora do prémio da Fundação Guerlain, em 2009. Do se curriculum, bem vasto, constam das colecções de vários museus importantes, como o MoMa, o MAM-Centre Pompidou, o Morgan Library Museum ou o Art Institute de Chicago.
O seu trabalho deve a própria natureza às profundas raízes da cultura chilena, às correspondentes tradições populares dessa região, entretanto esbatidas (marcadas pelo sentido mais antigo da memória), pela influência da contemporaneidade em Sandra Vásquez. Esta exposição, inaugurada a 25 de Setembro, encerrará em Novembro.
AS MULHERES RAINHAS
Sandra nasceu no Chile, em 1967, na Villa del Mar. Vive e trabalha em Berlim. Senhora de um vasto curriculum, os seus mais recentes prémios correspondem a 1996, Bienal de Desenho, Museu de Belas Artes, Santiago do Chile, Prémio de Desenho, como em 2009, pela Fundação Florence et Daniel Guerlain, Paris.
Na sua obra, o apelo à mulher é predominante e reveste-se de diversos sentidos, no âmbito do erotismo, do desejo, fantasia ardente que ela própria evoca e projecta sobre si mesma. São formas de poder, circunstâncias de uma condição cortante e humana, carregada de fantasmas, lembranças de temor, sonhos de afrontamento. As mulheres têm, com efeito, um papel fascinante e por vezes dorido, corroborando o sentido reprodutor da vida, entre o nascer e o começar, propiciando a alegria quente das entregas ou a sabedoria das esperas, envolvendo por vezes o lado sombrio da existência, talvez a citar Goya, os seus lugares e personagens, e ainda Odilon Redon, James Ensor, porventura.
Entre a fragilidade e a força, as mulheres empregam no seu estado existencial uma espécie de projecção nobre, reinam por vezes sobre aqueles que as cercam nas esperas mais violentas ou românticas.
Esta perspectiva, aliás desenhável de formas não coincidentes no recorte dos personagens que nos lega, tende a ligar entre si representações igualmente consolidadas, quer na qualidade plástica como na imutabilidade técnica, em termos oficinais, porque os desenhos são submersos em cera, com o preciosismo necessário, o que os fixa concretamente e lhes confere, depois de endurecidos, uma sugestiva aparência acetinada.
A REPRESENTAÇÃO ESTRANHA
Pelas dificuldades experimentadas quanto ao acesso à artista aqui visitada se pode perceber como os grandes centros do poder cultural afastam os maiores autores de pequenas capitais e incertas indústrias das artes. De que modo arrancar de tais universos (Berlim o Nova Iorque) as misteriosas figuras inventadas sob o tecto dos imensos subterrâneos onde só descem as divinas rainhas da estranha representação do mundo e que se tornaram raras como diamantes? O texto que acompanha esta exposição interroga-se e interroga-nos sobre esta problemática. A teimosia poderia somar-se ao inflamado curriculum de Sandra: “o fascínio suscitado pelos seus desenhos, vistos com frequência nos circuitos comerciais e institucionais, sempre foi bastante para que o operador da busca não desistisse. O assédio durou cinco anos, desde 2009, altura em que Sandra alcançou o prémio Guerlain.”
Olhemos então o tema recorrente de Sandra Vásquez, a mulher. Uma arte baseada, através da estranha representação em torno da figura feminina, algo que, desde logo, ganha notoriedade ao comunicar assim, com força, um universo inusitado, feito de desenhos por vezes quase crus, linha descarnada ou muito simples a moldar uma opacidade invisível, transparências inesperadas, tudo afinal gerado com lápis de grafite e aguarela carnal. Esta figuração diversificada, por vez indirectamente alienígena, ganha a proximidade do diálogo, meio e símbolo. Cresce então, da superfície, um universo fantasioso, no qual se enlaçam referências às antigas tradições chilenas – e o lápis não cessa de perseguir inquietantes contornos, sombras, cabelos em trança, línguas saindo de bocas redondas, a cantar a letra, a brincar com a surdez do mundo. E a mulher-menina, apertada no seu corpete, pode enfim soltar os seios, rindo-se das criaturas e dos seus tabus. Obra largamente colada às mil formas de ser mulher reina, alargando o universo das hipóteses gráficas e plásticas de uma espécie de circo erótico, elitista contudo, algo que enovela véus e vénias.
A mulher existe nesta obra não apenas para testar a sua beleza e o seu efeito comportamental, entre o olhar e o ser. Ela ilustra sonhos, diverte gente surpreendida, roda sobre si própria, nua, rapariga ainda, transferindo restos esféricos de um prato ao alto para o outro lado do espaço, como acontece com a magia dos palcos ou da errância pelo prazer. Usa máscaras. Reedita arlequins, medos e distâncias, a escala de misteriosos desaparecimentos.
Numa entrevista, Sandra diz que o seu trabalho é experimentação. Assim se materializa o desenho e o seu aprofundamento de acordo com certos níveis da consciência. “Quando digo experimentação, quero dizer que ainda estou no âmbito da técnica. Já as visualizações, no termo representativo, têm a ver com os níveis da consciência.”