Se virem passar um homem com olhos de água viva, um azul molhado a parecer capaz de cobrir o rosto inteiro, como noite única, suave, uma noite de trinta centímetros, prestem atenção. Pode ser alguém de um quadro do Paulo Damião, ou pode ser o próprio Paulo Damião. Sempre, de todo o modo, alguém raro, de mundo diferente. Um mundo raro.
Pensarão, como pensei também durante um tempo, que as figuras dos quadros não ganham autonomia para se meterem a caminho pelas ruas, mas nem todos os quadros são como coisas mortas e nem todas as mortes são quietas.
A mim, perseguem-me os rostos que o Paulo Damião inventa. Uns rostos perscrutando o diante da tela, ansiosos, demasiado ansiosos, e que parecem aguardar o momento certo para nos tomar de assalto, um momento em que talvez se libertem da bruma tão etérea quanto infernal em que o pintor as pôs, um momento em que talvez acedam a tocar-nos, colocando-se às nossas costas ou sobre os ombros, no côncavo das mãos. Sem que pesem, são seres de uma luz estranha que, nós descuidados, libertamos por aí.
Os quadros lacustres do Paulo Damião são invariavelmente um desafio à luz, e é também por isso que digo que as suas figuras espectrais são feitas só de uma fibrilação da luz. São muito incorpóreas, muito indefinidas, no quadro como ao centro de uma infinita escuridão, ainda que o que vejamos propenda para a brancura. Tudo tende para o infinito em seu redor. Lacustres, emergem à superfície e encaram o pintor num espanto, mas pressupomos que são entidades da escuridão, gente para não ser vista, impossível, a metades feita de sonho e pesadelo. Assim, tenho sempre a sensação de uma beleza sinistra que nos persegue por dentro como os feitiços. A dimensão profundamente espiritual das figuras de Paulo Damião mexe com a nossa metafísica inteira.
Gosto desta ideia de a pintura ser coisa de feitiço, como uma arma estranha para roubar, contaminar almas. O incómodo perante um quadro pode justificar-se por esse poder inesperado de sermos invadidos pelo que vemos, percepcionando muito além do evidente, como se as evidências acarretassem riscos, perigos, obrigando-nos à mudança, incapazes de regressar ao ponto inicial. A grande arte sonha com isto. Mudar o seu interlocutor, mudar quem chega à sua presença.
Às vezes, maluquinho, ponho-me a imaginar a Ophelia de John Everett Millais, ainda a balbuciar umas palavras. Mesmo antes do instante de morrer. Porque a vejo como quase não morta, tão impressionante diante de nós que, se fosse possível mexer-lhe, nos dá vontade de a abanar como se faz quando o desespero nos leva a tentar reanimar alguém. Cria-nos a convicção de que, se a tomarmos nos braços, se lhe gritarmos dizendo que a queremos, ela vai ainda respirar e tudo se vai reverter, para sempre, eternamente, porque a vida dos quadros é eterna.
Os quadros do Paulo Damião têm esta mesma propriedade. A indução esquisita de vida, muito entre mundos, entre dimensões, que mistificam toda a relação que estabelecemos com a arte, que foge definitivamente disso de ser uma questão de objectos, e passa a ser uma ligação interior entre o comportamento da luz dentro e fora do nosso corpo. Sentimo-nos como condutores de energia, recebendo ou fornecendo, como numa alimentação superior.
Os quadros que tenho em casa, os que efectivamente se penduram nas paredes e ficam a olhar para mim, são sempre vasculhados nos seus mais profundos segredos. Só sei ter quadros assim, a meter-me com eles e a esperar que se manifestem. É como desconfiar de todos e de cada um, porque não duvido de que são capazes de me revelarem aquilo que nunca esperaria ver revelado, algo que a minha ansiedade engrandece e a maluquice justifica. Mas, por outro lado, é também algo que torna a vida numa experiência mágica, acima do truca-truca de eleger primeiros ministros e pagar impostos e esperar que depois da morte exista paraíso que nos recompense da tragédia e do tédio.
O Paulo Damião está com uma exposição incrível na galeria MAC (Movimento Arte Contemporânea, Rua do Sol ao Rato, 9c, em Lisboa) até dia 24 de março. Não acreditem em nenhuma reprodução que virem dos seus quadros. Não há outro modo de os entender sem que seja directamente. A cor, o modo ténue como muda dentro do quadro, a profundidade que adquire e a densidade que sugere, só se percebem no flagrante da arte. Lembra o que sofrem os quadros de Rothko. Vistos por catálogo são como pantones das tintas Cin.
Depois da exposição, talvez percebam, como eu, que estranhos homens e estranhas mulheres de olhos azuis de água viva possam passar pelas ruas, muito fugazes, invisíveis à maioria da população. Intrometidos no dia mais normal, sem quererem magoar ninguém, apenas em fuga, deambulando pela nossa estupefacção como se nos habitassem fantasmas. A arte também serve para ganharmos fantasmas. Para que não atravessemos a vida sem a plenitude do que é possível sentir, imaginar, acreditar.