O grande enigma da literatura portuguesa atual reside no valor que o futuro atribuirá aos romances presentes de Rui Nunes. As lições do passado não nos permitem retirar nenhum padrão. Há de tudo: autores de grandes sucessos que quase desapareceram após a sua morte (Pinheiro Chagas); autores quase totalmente desconhecidos que, após a sua morte, foram recuperados como grandes escritores (Cesário Verde, Camilo Pessanha, Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro); autores incompreendidos e marginalizados em vida, presentes hoje no cânone (Florbela Espanca, Cesariny, Luiz Pacheco); autores incensados em vida, posteriormente marginalizados (Guerra Junqueiro, Eugénio de Castro); autores que receberam em vida o favor da história da literatura e, passado o tempo, é-lhes atribuído um valor mais cultural e menos literário (autores neorrealistas, com exceção de Carlos de Oliveira) .
O que sucederá a Rui Nunes? Será a sua linguagem, o seu “estilo” literário e os seus temas filosóficos compreendidos dentro de 50 anos? Ele bem o merece porque é hoje um dos maiores escritores da literatura portuguesa, cujos livros recusam os habituais protocolos de leitura e cuja escrita é absolutamente devastadora face à nossa civilização.
Lamentavelmente, há poucos estudos sobre a sua obra: duas teses de mestrado, a de Cristina Reis, Rostos de Rui Nunes: decompor a narrativa, de 2002, e a de Maria João Serrado, Os Caminhos da Voz. A polifonia Escrita de Rui Nunes, de 2007. Que conheçamos, não existe nenhuma tese de doutoramento. Para além de artigos avulsos, entre os quais se deve citar o de Manuel Frias Martins, “Rui Nunes: o labirinto de vozes em Grito” (in As Trevas Inocentes, 2000), a melhor análise da sua obra provém de um artigo de jornal, “Rui Nunes. No íntimo de um escritor”, do crítico João Oliveira Duarte, publicado no jornal i em 21 de junho de 2021. Muito importante igualmente, porque síntese da sua voz singular, a entrevista que Leonor Nunes lhe fez aqui no JL de 2 de janeiro de 2009, “Rui Nunes – Farto da ‘literatura’”.
Rui Nunes (RN) publicou agora Irradiante, o negro. Na crítica referenciada acima, João Oliveira Duarte propõe a tese de que RN não escreve romances, escreve apenas “um livro contínuo, infinito”, “os textos que foi publicando ao longo de 40 anos seriam uma espécie de marginália, de notas que foi juntando, de restos que foi coligindo e armazenando nas margens deste texto maior que é este tempo, o nosso e o dele”.
É uma tese ousada, mas que faz sentido para quem conheça razoavelmente bem a obra de RN. Se Pessoa cultivou a arte do fragmento, RN cultiva a arte da “nota”. Os seus romances, inclusive o ora publicado, constituir-se-iam como notas estéticas, observações fundamentadas, comentários assentes numa visão do mundo em que “Deus já deixou de não existir” [O Anjo Camponês (Pardais, Deus Ossos), p. 58, toda], ou seja, um tempo em que deus é apenas um “resto”, em que já não faz sentido o debate igreja-ateísmo e em que o valor emotivo posto antigamente em deus foi transferido para qualquer produto de supermercado anunciado na televisão. Deus transformou-se num ídolo igual e com o mesmo potencial de atração de múltiplos outros, ou seja, como já escrevemos a propósito de RN, num “valor sem valor”, autêntico pechisbeque. Com ele (o valor de deus), a civilização ocidental ficou, tem ficado, de pernas para o ar, com todos os seus valores invertidos, em que o ateísmo é ainda a relíquia de um tempo já morto.
Neste sentido, como ler um “romance” de RN, autor que desvaloriza as tradicionais categorias por que este é construído: a história, a ação, a construção mimética da frase, a ligação tempo-espaço, a descrição clássica da personagem? Devemos detetar um conjunto de traços semânticos fortes [neste romance “um negro irradiante” (p. 38), correr, muro, morte, bode, a criança…] a partir dos quais ou no entrecruzamento dos quais constrói fluxos textuais (as frases, os parágrafos) que tendem a destruir o sentido semântico comum (cf., como exemplo, p. 43), criando o seu universo estético transfigurador de todos os valores clássicos.
Este universo não possui uma inteireza, uma coesão e uma relação harmónica entre as partes, pelo contrário, é feitos de “restos”, de acontecimentos dispersos, que funcionam para o leitor como sinais, como ligações quase arbitrárias. O fluxo textual parece ser o elemento central e motor da sua escrita.
Assim, a beleza literária não assenta numa narrativa mimética do real, mas na junção de restos civilizacionais (as tais “notas”) mais os sinais que apontam tanto para o que resta do mundo antigo como a emergência de um novo. Deste modo, a beleza de um romance, refletindo o atual mundo devastado, assenta na ausência de continuidade entre os fluxos textuais (a narrativa) que aniquila todas as certezas que o leitor possa ter, abrindo-lhe um novo mundo, o mundo de Rui Numes.
Cada fluxo textual é como um novelo com a ponta (os traços semânticos fortes) virada para dentro, desenrolá-lo é penetrar num dos universos mais enigmáticos, mas mais extraordinários, que a literatura portuguesa criou no século XX. Esperamos que os críticos, professores e leitores do futuro lhe deem o devido valor.