Depois de três romances, No Jardim do Ogre, Canção Doce e O País dos Outros, que consagraram Leïla Slimani como um dos grandes nomes da literatura em língua francesa, a Alfaguara disponibiliza em português outra faceta importante da escritora marroquina há muito radicada em Paris: a da não ficção e do ensaio. E pode dizer-se que O Perfume das Flores à Noite é de leitura obrigatória tanto para quem já conhece a sua obra, como para quem a quer descobrir. Em centena e meia de páginas, Leïla Slimani dá-nos um retrato íntimo e expressivo da sua identidade, das suas raízes e família, ao mesmo tempo que traça o contorno da sua escrita e vocação literária. É uma caixa negra que se abre na mesma altura em que a escritora se viu fechada numa sala, aprisionada num museu.
Publicado em França no ano passado, O Perfume das Flores à Noite integra a coleção A Minha Noite no Museu, coordenada por Alina Gurdiel nas Éditions Stock e que já conta com 12 volumes de autores francófonos ou há muito fixados, por vários motivos, incluindo políticos, em França. Cada escritor foi desafiado a dormir numa grande instituição cultural e a escrever sobre essa experiência.
Consciente de que “a primeira regra quando se quer escrever um romance é dizer não”, sobretudo a convites sociais — e estava na altura a meio da escrita de O País dos Outros —, Leïla Slimani aceitou o desafio, talvez pela sua propensão para o isolamento, talvez pelo gosto de se enclausurar entre quatro paredes para assim, longe dos outros, reviver fantasmas e fantasias.
E foi exatamente isso que aconteceu na noite que passou no Palazzo Grassi — Punta della Dogana (Coleção Pinault), em Veneza. Em vez de glosar as obras da exposição coletiva Lugar e Sinais, o que também faz, a escritora puxa pelos fios da memória diante de cada escultura ou instalação, em busca da ponta do novelo da sua própria história e, em particular, da sua escrita. Dessa forma, O Perfume das Flores à Noite é um relato autobiográfico que nos seduz desde a primeira página e que se alonga num crescendo de intensidade. Aqui cabem todos os ensinamentos que Leïla Slimani retirou da vida e da literatura. É um volume que pode ser lido como uma confissão, pois tem a força das partilhas mais íntimas (e fica-nos na memória o seu deambular pelas salas do museu, a Rabat da sua infância, a rebeldia da adolescência ou a Paris da sua afirmação literária); assim como um manual de escrita criativa, com muitas frases sublinháveis, na medida em que se tenta identificar todas as forças e fraquezas que contribuem para uma entrega total ao ofício de se recriar nas páginas de um romance.
Na demanda da sua identidade pessoal e literária, Leïla Slimani descobre-se entre dois mundos, sem terra própria (árabe em França, afrancesada em Marrocos), o que a leva a questionar-se: “Que temos nós a contar quando sentimos que não pertencemos a lado nenhum?” A resposta vem segura: “Muitos pensam que escrever é reportar. Que falar de si mesmo é contar o que se viu, relatar fielmente a realidade de que se foi testemunha. Eu, pelo contrário, gostaria de contar aquilo que não vi, aquilo de que nada sei mas que me obceca. Quero contar os acontecimentos a que não assisti mas que, não obstante, fazem parte da minha vida. Quero pôr palavras sobre o silêncio, desafiar a amnésia.”
No entanto, escrever, para Leïla Slimani, também é reparar uma injustiça: a que vitimou o seu pai, envolvido num escândalo financeiro, em 2003. Foi preso e libertado passado seis meses, para acabar por morrer pouco tempo depois, em 2004, antes de conhecer a absolvição. A consciência de que se escreve “para reparar todas as infâmias” percorre o livro todo, mas atinge o seu clímax quando a escritora se confronta com o que, apesar da dor, alimenta a sua literatura. “Por vezes pergunto-me: se tivesse de escolher entre a sobrevivência [do meu pai] e a escrita, qual seria a minha decisão?”
Com esta pergunta Leïla Slimani apercebe-se de que “todos os escritores são monstros”, como dizia Henry Montherlant. Ou que “não se pode escrever sem considerar a possibilidade de trair”, como lhe ensinou Salman Rushdie. A única fé do escritor é o seu próprio trabalho.