João Reis (n. 1985) publicou o seu primeiro romance, A Noiva do Tradutor, em 2015, e este ano, 2022, publicou o seu sexto romance, Cadernos da Água. Alguns dos seus livros foram finalistas de diversos prémios. Esta situação coloca João Reis (JR) como um dos mais importantes romancistas entre os novos autores que começaram a publicar na segunda década do nosso século e, para falar verdade, mesmo entre os novos autores deste século.
Logo em A Noiva do Tradutor, que teve de imediato uma 2ª edição, se reconhecia uma forte flexibilidade sintática, uma forte capacidade de composição de diálogos e um forte cruzamento lexical entre uma semântica concreta, popular (mas não popularucha), de gente comum, e uma outra mais abstrata, como se a escrita ficcional lhe fosse natural. E notava-se ainda uma excrescência retórica como se, mais importante do que escrever, fosse escrever bem, com alguma eloquência.
Em A Avó e a Neve Russa (2017), JR aborda o dificílimo tema do desenraizamento, não no sentido clássico (adultos emigrando para outros países), mas optando por deslocar para a mente de uma criança o universo das suas problemáticas físicas, psíquicas e sociais.
Em 2018 publica A Devastação do Silêncio, romance de fundo histórico (I Guerra Mundial) sem ser um romance histórico, evidenciando uma menor necessidade de uma escrita eloquente. Domina já uma escrita mais austera, mais sóbria. Neste romance surge igualmente uma característica que vai marcar a sua escrita: a atenção ao pormenor, uma observação aguda sobre a realidade, que, quatro anos depois, preencherá muitas páginas de Cadernos da Água.
Em 2019, explora o romance verdadeiramente histórico com Quando Servi Gil Vicente, sobre a velhice deste autor dramático e de um seu servidor, tentando utilizar uma linguagem renascentista. Uma mudança radical de estilo. Percebeu-se (definitivamente?) que o romance histórico não é a sua praia.
Em 2021, dá a lume Se Como Pétalas ou Ossos. Constituiu um salto para a maturidade literária, onde o trabalho sobre o realismo do pormenor já domina, tornando-se uma marca estética do autor (cf. 1ª e 2ª pp.). Aborda a vida de um jovem escritor, Rodrigo, numa residência literária em Seul, a pressão, via eletrónica, dos editores para cumprir o prazo da entrega de um livro anterior, as relações com a namorada e com os funcionários que o recebem na capital sul-coreana. Desencantado com a vida de escritor, que não lhe traz notoriedade nem lucro, descobre o manuscrito (mau) de uma espanhola que tinha desaparecido e coloca a si próprio a questão ética do plágio, já que vê na internet que a autora é uma escritora de sucesso, mas a espanhola reaparece. Rodrigo salva o mundo de um mau romance, deitando o manuscrito para um contentor de lixo e desiste de escrever.
Cadernos da Água é claramente uma distopia que, num futuro não muito distante, após guerras no Sul provocadas pela escassez da água e dois Eventos (uma das quais uma pandemia) que alteraram o destino da Europa, conduziu ao desaparecimento de Portugal e à fuga de populações para o Norte (para a situação geográfica destes acontecimentos, cf. pp. 128, 139-140 e 190-191).
Sara e a sua filha Mariana estão refugiadas na Suécia. Emanuel, marido e pai, ficou no antigo território português e é raptado pelo bando de Jonas, o Carniceiro, tornando-se seu motorista de pesados. Jonas, aquando das Guerras da Água (“Salve-se: poupe água”, aviso deixado pelas instituições aos cidadãos), organizara um grupo paramilitar que combatia ferozmente as forças invasoras magrebinas nos campos enquanto as hostes governamentais as combatiam nas cidades. Sara, escrevendo para Emanuel, vai compondo um “diário do campo de refugiados”, descrevendo o dia a dia do campo, que se assemelha a um campo de concentração (ausência de higiene, ausência de água suficiente, de alimentação, de roupas lavadas, de privacidade, todos sujeitos a ordens de que desconhecem o mandante). Sara tenta manter alguma dignidade e dá aulas às crianças, inclusive à sua filha.
As relações entre um conjunto de personagens nascidas da guerra prestam coesão narrativa a Cadernos da Água: Sara, a principal narradora, evidencia um conjunto de emoções e sentimentos relacionais que constituem quase um tratado psicologia aplicada; Emanuel, um adulto normal envolto em circunstâncias trágicas, faz tudo o que é possível para sobreviver e juntar-se à mulher e à filha; Jonas, o facínora sem escrúpulos morais, que faz tudo para enriquecer, inclusive matar sem piedade, um adorador do dinheiro e do ouro; Paulo, o oportunista, que se aproveita da situação no campo para enriquecer e abusar das mulheres; Cecília, sua esposa, mulher frágil e passiva; António, doente dos rins, que vê o mundo através da água que necessita para se salvar; Gabriela, mulher de António, sacrifica-se sexualmente, acedendo a ter relações com Paulo para que este possibilita a passagem do marido para a enfermaria e salvar-se; Maria Leonor, a intérprete, medrosa, hesitante, recusa-se a tomar posição a favor dos portugueses.
Para além destas personagens principais, o texto é intervalado de comunicados governamentais e de notícias que vão situando no tempo e no espaço, gerando um suspense sobre o destino final das populações europeias e dos refugiados. Vencendo a distância entre Portugal e a Suécia e ludibriando Jonas, o Carniceiro, e Paulo, o oportunista, Sara, Mariana e Emanuel juntar-se-ão no final? O leitor responderá.

Cadernos da Água
Quetzal, 244 pp., 17,70 euros