Álvaro Laborinho Lúcio mostra-nos no seu mais recente romance As Sombras de Uma Azinheira, através de duas personagens centrais, as mudanças profundas que Portugal viveu com o 25 de Abril de 1974. Escrito durante o confinamento imposto pela pandemia, o autor encontrou na clausura o momento para escrever sobre a liberdade. E o aproximar dos 50 anos do 25 de Abril deu-lhe motivação para escrever um romance com duas personagens dignas da data.
O romance começa na madrugada de 25 de Abril de 1974 mas não é uma narrativa histórica nem política, embora também seja claro que não se trata de um texto ideologicamente neutro – não é um romance neutro em termos políticos e ideológicos porque é uma aposta naquilo que verdadeiramente deverá conduzir ao êxito das ideias de Abril. Talvez este êxito dependa de duas questões que o romance nos coloca: o que é que ainda está por fazer e/ou o que é que correu mal? As Sombras de Uma Azinheira parece indicar-nos que há um caminho a seguir, dificuldades a ultrapassar, dúvidas que surgem a partir daquela data de Abril de 1974, e significa também a possibilidade de nos posicionarmos, à medida que nos aproximamos da data do seu 50º aniversário, que é importante não ficarmos presos àquele dia, àquele momento, que devemos fazer a festa, claro, mas também talvez fosse bom comemorar Abril numa perspetiva de futuro, numa perspetiva de avaliação do passado e de projeção para o futuro.
É o que está na base destas duas personagens centrais do romance: João Aurélio, que vem do passado, 45 anos anteriores ao 25 de Abril, que foi um interveniente ativo para que o 25 de Abril acontecesse e que surge no romance como alguém que, devido a uma fatalidade pessoal naquela mesma naquela data, acabou por renunciar a tudo e que volta para a aldeia para nos dar uma ideia de Portugal antes do 25 de Abril. Nesse mesmo dia em que nasceu a sua filha Catarina, que é a personagem que se lança para o futuro. A mesma Catarina que, devido ao abandono do pai, vai desenvolver-se nesses 45 anos depois da revolução questionando-se a si própria, trazendo as suas próprias inquietações, afirmando-se pela sua liberdade mas sempre ligada a uma forma consciente de viver essa liberdade.
E cito uma passagem de Catarina: “O 25 de Abril é para mim como uma daquelas mães que, exasperada diante da irredutível firmeza da filha impondo, contra a dela, a sua vontade, lhe grita ameaçadoramente, repondo o seu poder: ‘Não te esqueças, fui eu que te pari!’. É verdade, isso. É verdade, e essa será sempre a minha mais profunda amargura. Ter nascido sem mãe, parida por uma revolução.”
Há uma simbologia evidente na relação entre as duas personagens centrais da obra através das quais o autor apresenta o tema do romance, mas também existe um conjunto de outras personagens desatentas dessa realidade. Marta, um dos amores de Catarina, que é uma lufada de ar fresco na narrativa, dada a sua espontaneidade. E Diogo, por exemplo, o primeiro namorado de Catarina, cuja amizade é tão “raçuda” que até defende a personagem do próprio autor: “Não trocaria por nada a amizade de Catarina. É para nós infindável. Será que o amor também seria? Ou acabaria por se perder nas complexas voltas do romance? Talvez pudesse ser salvo por um final feliz. Mas quem acredita hoje nisso? Não se preocupe comigo. Eu sou um homem bem resolvido. Está agora nas suas mãos fazer também da Catarina uma mulher feliz.”
Tirada que surge precisamente num dos momentos mais interessantes do romance, do ponto de vista formal: o facto de existir um intervalo entre a primeira e a segunda parte. O autor trata de dialogar nesse intervalo com as suas personagens, claramente com o objetivo de quebrar o envolvimento por parte do leitor, que possivelmente neste período da narrativa já estará suficientemente envolvido com as personagens, até do ponto de vista emocional. O autor faz um intervalo para que o leitor perceba que estamos a tratar claramente de ficção e não de um romance ensaístico. Nesse encontro que faz com as suas personagens, convidando-as para um almoço entre a primeira e a segunda parte do romance, o autor acaba por revelar a própria consistência das personagens: o romance é contado alternadamente pelo pai e pela filha; assim o pai é uma personagem concluída e construída que vem de antes do 25 de Abril, e a filha Catarina, nascida no 25 de Abril, é ainda uma personagem em construção, e por isso parece dialogada com o próprio intervalo quando se fala nela porque não vem ao almoço, porque está apreensiva com a segunda parte do romance e com uma figura essencial, que ela vai ter de encontrar, mas que não irei desvendar para não me acusarem de, como se diz em inglês e está muito na moda usar em relação às séries e filmes, ser spoiler.
Pois bem, João Aurélio e Catarina, as duas personagens com quem todos os outros personagens se cruzam, são afinal Portugal antes e depois do 25 de Abril. A relação disfuncional, inexistente até, entre pai e filha precisaria de um encontro para se construir algo com futuro, assim também parece querer dizer o romance em relação a Portugal antes e depois do 25 de Abril. Procura-se que haja esse encontro.
As Sombras de Uma Azinheira é uma obra fundamental para refletir sobre o presente e tem o poder de ser uma espécie de sismógrafo que dialoga com os mortos e com aqueles que hão de vir. Portugal é, sem dúvida, o grande protagonista desta história.
*Cláudia Lucas Chéu é escritora – poeta, dramaturga e ficcionista