São histórias de amor ligadas ao exílio, à clandestinidade, à resistência, quer na luta antifascista em Portugal, quer nas de libertação nas antigas colónias portuguesas. Quem sobe ao palco do Teatro Nacional D. Maria II (TNDMII) são os próprios resistentes, Isabel do Carmo, Margarida Tengarrinha (em vídeo), Armando Morais, Mariana Camacho, Mariana Morais, Gouveia de Carvalho, no novo espetáculo da companhia Hotel Europa, Esta é a minha História de Amor, que estreia a 17 no Teatro Nacional D. Maria II (TNDMII). A ideia foi justamente pôr em cena os próprios protagonistas e não atores, como adianta ao JL André Amálio (AA), que encena e também interpreta: “Esses resistentes vão contar as suas histórias de amor e através delas percebemos todo o pano de fundo da opressão e da resistência dessa época.”
A peça encerra um ciclo dedicado justamente ao amor em tempo de resistência, que integrou ainda Amores Pós-Coloniais, Amores na Clandestinidade e Amores de Leste. Um ciclo que deu continuidade a um outro, com os espetáculos Portugal não é um País Pequeno, Passa-Porte, Libertação, Os Filhos do Colonialismo e a performance de 13 horas o Fim do Colonialismo Português, em que André Amálio e Tereza Havlícková, que dirigem a companhia, deram início a uma reflexão sobre a realidade portuguesa nos anos da ditadura.
A Hotel Europa desenvolve um teatro documental, que cruza a dança e a performance, com base numa intensa e continuada pesquisa histórica e testemunhal, pelo que, desde 2016, os criadores têm realizado dezenas de entrevistas. “Fizemos todo um caminho antes, pelo que não foi difícil que agora contassem as histórias mais pessoais”, salienta ainda AA. “Houve uma relação que se criou, conhecem-nos, a nós e ao nosso trabalho, pelo que quando entrámos nas suas casas para filmar, não era a primeira vez que nos víamos”. O encenador reconhece que, depois de tantos testemunhos recolhidos nos últimos anos, já havia uma “história comum”, um “caminho percorrido”, o que permitiu que as pessoas acedessem facilmente a contar os seus amores resistentes, uma “sintonia” que noutras alturas da longa investigação realizada, para diferentes espetáculos, foi mais difícil: “Sentimos as barreiras ultrapassadas.”
A alguns dos entrevistados lançaram o “desafio” de partilharem diretamente as suas vivências com o público à boca de cena. “Gravámos, desta vez, todas as conversas prévias em vídeo, em alguns casos filmámos até os sítios onde estiveram a viver na clandestinidade ou que, de alguma forma, foram marcantes para estas pessoas. E tem sido uma experiência muito interessante, muito enriquecedora, trabalhar com elas, contarem as suas histórias de vida num palco como o do Teatro Nacional”, afirma AA.
De resto, são pessoas habituadas a falar em público, até pela sua intervenção política, e portanto com uma facilidade de comunicação que tem sido uma ajuda no processo, embora representar numa peça de teatro seja diferente, como faz notaro encenador: “Desde logo pelos ensaios, repetições, marcações que implica. Muitas vezes as pessoas não se apercebem de que o teatro é uma área tão complexa. E, nesse sentido, é também uma descoberta para essas pessoas”.
Vidas separadas
Ao correr da construção do espetáculo, foram, por outro lado, marcantes, para AA, as reações dentro do próprio grupo: “Outro dia, fizemos um ensaio em que assistiram às histórias uns dos outros, porque primeiro trabalhámos com eles separadamente, e foi interessante ver a sua sentida reação”, sublinha. “Tudo o que tem a ver com esse passado de luta continua a ter uma ressonância grande em todos os participantes. Há casos partilhados que não nos podem deixar indiferentes, alguns muito duros e que nos tocam de cada vez que são contados.”
Um dos mais duros é certamente o de Margarida Tengarrinha, pela morte do seu companheiro, o escultor José Dias Coelho, assassinado pela Pide. Mas também o que Isabel do Carmo recorda, “um amor interrompido pela ditadura, dado ele ter de partir para o exílio, porque podia ser preso a qualquer momento”. “Temos um panorama de histórias muito alargado que acaba por dar a ideia da forma como a ditadura condicionava e oprimia a vida das pessoas, obrigando-as a separações e a tomar decisões radicais, sem terem outra opção”, afirma. “Por exemplo, Adolfo Maria, que largou tudo e foi juntar-se à luta anticolonial, com a sua mulher e o filho de um ano. São atos maiores que as próprias pessoas. Histórias que ganham também um sentido ainda mais forte, neste momento, com a guerra na Ucrânia”.
Como o amor pode ser uma forma de resistência, mesmo suportá-la ou como a resistência pode levar ao amor, são aspetos “indissociáveis” nestes relatos. “Temos também uma história muito bonita de duas pessoas que não se conheciam, estavam na clandestinidade, e foram viver para uma casa, fingindo que eram um casal. E, na realidade, apaixonaram-se e estão juntos até hoje”, lembra AA. “Foi muito gratificante conhecer estes resistentes. Houve momentos em que senti mesmo uma enorme gratidão por terem feito tantos sacrifícios por mim, que já nasci depois do 25 de Abril.”
André Amálio sublinha a importância de ouvir estes testemunhos para “percebermos o que estava em causa, contra o que lutavam e o que essa luta significava em termos de riscos, perigos, dedicação”. “A minha geração é muito marcada por este passado que viveram os nossos pais, tios, avós, e pelos papéis que, muitas vezes sem saberem, acabaram por ter, indo para a guerra, desertando ou exilando-se, lutando, resistindo ou não fazendo nada contra o regime”, diz. “Faz sentido para nós continuar a pensar e a discutir isto e, com o nosso trabalho, trazer a discussão para o espaço público.”
O teatro tem, nesse contexto, um importante papel a desempenhar, no entender do ator e encenador: “Ainda há muitos tabus na sociedade portuguesa, mas que têm vindo a ser chamados à cena para uma reflexão séria. E o teatro tem estado presente, para compreendermos como podemos aprender com o passado para construir uma sociedade melhor”, salienta. “Olhar o passado sem mitos criados ainda no fascismo e que se mantiveram largos anos, como, por exemplo, o regime fascista ter sido ‘brando’. Porque não é verdade e é preciso contrapor factos, histórias a essas mentiras sobre o nosso passado e a nossa História”. E acrescenta: “Há muito a fazer, um caminho longo, mas acho que já houve mudanças e cada vez mais as pessoas pensam que é preciso mudar.”
Esta é a minha História de Amor, com dramaturgia do próprio André Amálio, numa co-criação com movimento de Tereza Havlícková, fica na Sala Estúdio do no TDMII até 10 de abril, com entrada livre no Dia Mundial do Teatro, em que haverá uma conversa com os artistas.
Em junho, no Teatro Nacional S. João, a Hotel Europa irá iniciar um novo ciclo mais ligado aos acidentes ambientais, à ecologia. Com as pessoas da comunidade local, antigos mineiros, jovens ativistas, sobre a mina de S. Pedro da Cova e o crime ambiental que lá foi cometido, partilhando o palco com o orfeão e a banda filarmónica, uma “criação muito diferente”, assume Amálio, daquilo que a companhia tem feito e que gostaria de disponibilizar, possivelmente online, para que todos possam conhecer as histórias recolhidas para os seus espetáculos.