Em palco, Patrícia Andrade, a voz e a guitarra para tocar o amor e a sua perda. A Voz Humana, de Jean Cocteau, um texto escrito em 1930, e que já teve muitas representações e versões ao correr dos tempos, no país e em todo o mundo, apresenta-se agora noutro tom, para dizer os mesmos sentimentos: rasgados acordes contemporâneos para um clássico da dramaturgia universal. A atriz e cantora aprendeu mesmo a tocar para este espetáculo, que concebeu cruzando a energia musical com a força teatral das palavras. E que surgiu da “inquietação” sobre “como experienciar o palco do teatro com a mesma intensidade de um concerto rock”, conforme adianta ao JL. “Esse foi o meu desafio pessoal e artístico.”
A Voz Humana, segundo Patrícia Andrade, que interpreta, encena e assina duas canções, vai estar em cena de 10 a 16 de janeiro, no Clube Estefânia, espaço da Escola de Mulheres, em Lisboa. É uma produção do Teatro do Eléctrico, com coencenação de David Pereira Bastos (ver caixa), música e sonoplastia de Fernando Matias e vídeo de Bruno Simão.
A criação do espetáculo, que estreou em Loulé, em maio, implicou ainda, numa fase inicial, um desafio lançado nas redes sociais, para que as pessoas enviassem cartas de amor reais ou imaginárias. A resposta excedeu as expectativas e essa correspondência amorosa esteve na base de um podcast, justamente chamado Cartas de Amor (disponível no Soundcloud), realizado por Carolina Freitas, com música, entrevistas e a leitura de excertos por Patrícia Andrade, David Pereira Bastos, André Albuquerque, José Leite, Sílvia Figueiredo e Rita Carolina Silva.
Jornal de Letras: Porquê a escolha de A Voz Humana?
Patrícia Andrade: Foi um texto que me veio parar às mãos, nos anos 90, quando eu tinha 20 e poucos anos. E teve logo uma ressonância, um impacto muito forte em mim.
O que tanto a impressionou?
É um texto em que se pode ver para além das palavras, das frases, das reticências. O interessante é poder imaginar o que o amante daquela mulher está a dizer do outro lado do telefone. Também o que não diz… E é um tema universal.
Intemporal?
Na verdade, retirando-se as referências ao tempo do texto e da altura em que foi escrito, como o telefone, a telefonista, é muito atual. Acho que será atual até ao fim dos tempos, até acabar a Humanidade… (Riso) Logo que o li, pensei que um dia gostaria de o fazer.
E porquê agora?
Esperei 20 anos para o fazer, mas penso que é um texto que também pode crescer com a experiência de quem o protagoniza ou encena.
Houve uma atualização do texto?
Considerámos que havia partes que não acrescentavam sentido a este olhar que queríamos dar de A Voz Humana. As linhas cruzadas, por exemplo, estão lá inicialmente, mas depois vão-se dissipando, enquanto no texto integral a personagem volta repetidamente a elas. Também porque queríamos seguir a dinâmica, a linguagem de concerto.
Como surgiu a ideia de encenar A Voz Humana como um concerto de rock?
Eu andei também pela música, tive uma banda, a Sinistro, um pouco pesada, fiz tournées pela Europa, e por esse contacto com a música pensei que faria todo o sentido juntá-la a essa obra tão importante para mim e que queria fazer há tantos anos. E fazê-la agora, que já estou na casa dos 40, juntando as minhas experiências nesta encenação.
Guitarra, voz e sentimentos
As experiências do palco e da estrada?
Sim, a experiência artística e pessoal. E, nesse sentido, era importante ter a música, o canto. Fui aprender a tocar guitarra para o espetáculo, ainda não sei, mas a ideia é que seja um instrumento para prolongar a sonoplastia, no sentido de dar a voz interior da personagem. Tentámos que não fosse uma ilustração, mas uma voz dos sentimentos, das emoções. Em alguns momentos, a guitarra é mesmo uma extensão do corpo daquela mulher.
Foi preciso ter unhas para abordar dessa maneira um clássico como A Voz Humana?
Entretanto, convidei o David para co-encenar comigo e falámos muito justamente sobre como abordar o texto teatral e como se daria a interceção com o ambiente do concerto. A guitarra acabaria por ser importante para marcar a diferença e fazer a ligação entre um momento mais teatral e outro de natureza mais performática. Queríamos que o espectador olhasse para a mulher a tocar guitarra como se estivesse realmente num concerto.
Como atriz, foi estimulante estar na interceção desses dois mundos?
Há um crescendo, porque a personagem vai tendo várias fases e as emoções surgem progressivamente. Só faria sentido fazer A Voz Humana assim, sem intermitências ou interrupções, de um rasgo. A minha experiência enquanto vocalista de uma banda foi, nessa medida, muito importante, porque a música dá-me uma temperatura que me possibilita chegar a um determinado estado que o teatro não permite, talvez pela questão do texto, que implica uma abordagem mais formal. Claro que depende dos textos e dos espetáculos, mas acho que a música dá uma maior liberdade em palco. No caso, também porque fui eu que escrevi as letras, o que não obriga ao rigor que o texto teatral exige.
Escreveu letras e música?
Sim. Uma foi adaptada de uma música antiga que tinha feito para uma banda que tive há alguns anos, a outra, criei de raiz. Surgem no espetáculo nos momentos em que se dá a transição do teatral para o concerto e vice-versa. A música permitiu-me, de facto, experimentar uma liberdade neste espetáculo que ainda não tinha conseguido no teatro. A Voz Humana, aliás, também surgiu da inquietação de como experienciar o palco teatral com a mesma intensidade de um concerto rock. Esse foi o meu desafio pessoal e artístico (riso). Penso que consegui um acordo, conversamos muito, eu o meu lado musical e o teatral e chegámos a um consenso… Isso reflete-se em cena. E como é um monólogo, não corro o risco de deixar um colega sem deixa se quiser, por exemplo, prolongar um texto, repeti-lo, enquanto toco. É o tocar da liberdade que um concerto rock permite (riso).
Improviso e energia
Um espetáculo a tocar também o improviso?
Exato. Desde o início. Estivemos dez dias em residência artística no Teatro do Mar, dirigido pela Julieta Aurora Santos, em Sines, e estivemos sempre a improvisar. Penso que a improvisação é muito enriquecedora e acabou por ser um exercício elementar para est’A Voz Humana. E em palco tem que ser, porque se houver uma grande rigidez e formalidade, não acho que resulte. Aliás, pela digressão que já fizemos, percebemos que é assim. O espetáculo vive por si próprio e a improvisação permite que as pessoas o vivam com mais intensidade. Há uma guitarra, um microfone, uma pedaleira, tem de existir precisão e rigor, mas também lugar para a falha.
E o público, como tem sido a reação?
Já estivemos na Madeira, no Balcão Cristal, em Oeiras, na Bienal de Poesia, em Évora, no Festival de A Bruxa Teatro, não sei o que as pessoas estariam à espera de ver, mas penso que se deixaram levar pel’A Voz Humana. Em Évora, esgotou e houve uma energia muito especial. Já me disseram que era um espetáculo muito forte, que fazia lembrar, do lado da música, PJ Harvey ou que vinha na linha de Nick Cave ou de Patti Smith… Até fiquei com vontade de me esconder… (riso) Mas as referências são mesmo essas. Tal como Sonic Youth, Diamanda Galás, Jarboe ou a artista plástica Tracy Emin, que foi muito importante para este espetáculo.
Em que sentido?
Vi há alguns anos, em Londres, uma peça dela que me impressionou muito, uma cama suja, cheia de preservativos, com restos de Coca-Cola, que julgo que conta a história de uma fase da vida dela em que estava a sofrer e se deixava ficar ali. É desnudar a sua intimidade, no pior momento – o que queremos esconder, ela quis mostrar. Há um quarto, uma cama na peça do Cocteau, nós não quisemos ir por aí, mas quando fiz a pesquisa para o espetáculo, lembrei essa cama desfeita e ficou como uma referência, mesmo que isso não seja traduzido cenograficamente. Não está no nosso palco, mas acho que estão os seus destroços como referência artística.
A seguir? Que projetos teatrais ou musicais?
Vou fazer um monólogo/solo, no Teatro do Mar. E vai ser uma experiência muito interessante que, em principio, irá estrear em março. Quando acabar A Voz Humana, estou de partida para Sines, para novas pesquisas e iniciar um novo processo artístico. E é esse momento que me dá sempre um gozo particular. As pesquisas musicais, por exemplo.
Porquê?
Porque a música é preponderante para mim. Gosto sempre de imaginar que música faz sentido com os diferentes textos. A música é um subtexto.
Que música será a do próximo espetáculo?
Se calhar, Bach. Volto sempre às Variações Goldberg para me inspirar. Além disso, quando estou a criar um novo espetáculo, gosto de ir para os lugares, olhar as pessoas, as coisas, ver o mundo. Há muita riqueza artística no quotidiano. É preciso olhá-lo e transformá-lo. J
A música permitiu-me experimentar uma liberdade que ainda não tinha conseguido no teatro
A voz humana é um texto em que se pode ver para além das palavras, das frases, das reticências. Será atual até ao fim dos tempos
Quando estou a criar um novo espetáculo, gosto de ir para os lugares, olhar as pessoas, ver o mundo
Patrícia Andrade interpreta, canta e toca em A Voz Humana, de Jean Cocteau
Patrícia Andrade “Gosto sempre de imaginar que música faz sentido com os diferentes textos. A música é um subtexto”