Contam-se pelos dedos de uma mão e não haverá mãos a medir para equacionar as questões que levantam. São cinco agregados familiares que vão esgrimir argumentos e lançar pistas para uma reflexão. Da Família, criado a partir do livro de contos com o mesmo nome de Valério Romão, em cena até 16 de janeiro, na Oficina Municipal de Coimbra, é o novo espetáculo de O Teatrão que põe em cena as “mudanças” no contexto familiar. “Estamos num período de mutação, numa espécie de limbo”, afirma ao JL Marco António Rodrigues, que assina a encenação. “Foi isso que nos estimulou a fazer o espetáculo”.
É, de resto, um espetáculo que se desdobra em dois episódios, apresentando as histórias das famílias em dias alternados, numa construção dramatúrgica feita com o próprio escritor que trabalhou com a equipa num laboratório/residência. O elenco é o mesmo nos dois momentos, com os atores Isabel Craveiro, Margarida Sousa, Cláudia Carvalho, Hugo Inácio, João Santos, Sofia Coelho e Pedro Lamas. A cenografia foi criada por Filipa Malva, a música por Vítor Torpedo.
Da Família inscreve-se no âmbito do tema Casa, que O Teatrão tem desenvolvido nos últimos anos e ao abrigo do qual foram já apresentados os espetáculos A Grande Emissão do Mundo Português, Eu, Salazar, Richard’s ou Ala de Criados. E, como sempre, a companhia dirigida por Isabel Craveiro desenvolve um conjunto de atividades paralelas ao espetáculo em que se avaliam os novos modelos e práticas das famílias contemporâneas. Entre elas, Conversas da Família, um ciclo coordenado pela professora e investigadora Sílvia Portugal, em parceria com o centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, em que vão participar ainda Madalena Duarte e Graça Rojão, já amanhã, 16, Ana Nunes de Almeida e Deolinda Machado, a 18, Rosalina Costa e António Marujo, a 6 de janeiro. Ana Rita Brás, Pedro Raul Cardoso e Tiago Pereira, a 16 e 17, dinamizam Fica em Família, no espaço público. E haverá também Jantares Da família. “Todos os nossos projetos e espetáculos têm um sentido interventivo”, diz ainda o encenador brasileiro, que há 16 anos colabora com O Teatrão, lançando pontes entre São Paulo, onde fundou e dirige o Coletivo Folias d’Arte, e Coimbra.
Jornal de Letras: O que o motivou teatralmente nos contos de Valério Romão?
Marco António Rodrigues: Há uns anos tive contacto com um dos contos, publicado na revista Granta, e achei que tinha uma característica muito peculiar, pela maneira como abordava questões quotidianas com um tratamento fantástico. Fui depois atrás do livro inteiro, falei com a Isabel Craveiro e ficámos entusiasmados, porque esses contos são material realmente muito teatral.
E atual?
Sim, lida com temas muito candentes, com muita compaixão pelas personagens e de uma forma muito dialética. Isso bate com o tipo de trabalho que fazemos. Estamos num período de mutação da família, numa espécie de limbo… (riso) De certa forma, carregamos toda a estrutura da família tradicional, nuclear, e ao mesmo tempo, há novas formas, tribais, por conta de vários casamentos, divórcios, filhos de outros parceiros e parceiras, etc. E esse limbo é paradoxal, causa muitas angústias e inseguranças do ponto de vista subjetivo. Em termos estruturais, acho que vivemos num mundo muito marcado por aquela máxima de Margaret Thatcher: “Não existe sociedade, existem famílias e indivíduos”.
De que forma?
Essa frase é um marco do liberalismo, porque a partir dela, defende-se que o Estado social vá encolhendo e que o espaço público também, entrando no privado, como se cada família constituísse uma sociedade e estivesse em competição pela sobrevivência. O cruzamento dessas questões é muito potente. E foi isso que nos estimulou a fazer este espetáculo.
Interessa-lhes trazer à cena a questão da mudança da família tradicional, a emergência de novos modelos familiares?
Exato. Todas as mudanças na família têm uma potência, para o bem e para o mal, causam desconforto, mas também movimento. É isso que a obra do Valério romão nos provoca. Não é uma narrativa realista, no sentido televisivo, telenovelesco, mas tenta, de forma lúdica, investigar as estruturas, as forças que estão agindo. E foi muito motivador, para nós, tratar esta realidade, mas não é fácil, porque estamos habituados a trabalhar com uma linguagem mais experimental.
Como foi a experiência de trabalho dramatúrgico com o próprio autor?
Tínhamos pensado fazer a residência com o Valério no primeiro semestre, quando eu viria para Portugal.
Passa sempre uma temporada em Portugal?
Sim. Há 16 anos que venho para cá e fico seis meses, para trabalhar com O Teatrão. Como houve o fechamento por causa da pandemia, em Portugal e no Brasil, acabámos por avançar com o laboratório virtualmente. Eu trabalhava a partir de São Paulo, o Valério de Lisboa e a companhia de Coimbra, por Zoom. Escolhemos os contos, porque infelizmente não seria possível usar os 12 do livro. Fizemos algumas experiências dramatúrgicas, até cénicas e o Valério foi reescrevendo-os, mantendo a originalidade dos textos, mas tendo em conta as perspetivas que íamos experimentando. Foi um processo de trabalho com ele muito rico. Há males que vêm por bem, e, na verdade, o projeto ficou mais coletivo, porque todos subsidiamos essa reescrita.
Porquê a opção por um espetáculo em dois momentos?
Porque são, na verdade, cinco peças dentro de uma peça. Os elementos da família – mãe, pai, filhos, cão – são os mesmos, mas as situações mudam, porque são famílias diferentes. Se fizéssemos tudo de seguida seriam quatro horas de espetáculo ou mais. Já fizemos produções longas, mas como são cinco universos muito distintos, corríamos o risco de se tornar uma massa amorfa.
Ligação à comunidade
Qual o fio condutor das cinco histórias?
São histórias diferentes mas, ao mesmo tempo, os próprios atores constituem um coro de narradores que, de alguma maneira, as articula tematicamente. Isso também é feito através da música do Vítor Torpedo e da cenografia da Filipa Malva.
Como?
A cenografia é constituída por pequenas casas que se deslocam, e vão criando vários caminhos, quase como um quebra-cabeças.
O quebra-cabeças da família dos nossos dias…
(riso) É isso. E além dos atores, há cinco jovens da contrarregra que fazem as mudanças das casas. É como se estivéssemos, por exemplo, num estúdio de televisão e eles vão montando e desmontando a cena. Vai ficando um rasto dessa construção e esse é também um fio narrativo de uma peça para a outra.
Para os atores é um grande desafio?
Sim, porque fazem cinco papéis diferentes. É muito especial o trabalho do elenco. Do Teatrão por inteiro. Conheço o teatro do Brasil, da Rússia e nunca vi uma estrutura com tantos braços (riso).
Em que sentido?
Tem um curso livre de teatro, fazem trabalho com deficientes visuais, com seniores, na rua…
Um trabalho de ligação do teatro à comunidade?
Exatamente. E faz todo o sentido. Quem trabalha com arte, na verdade, não tem uma função ‘utilitária’. Não tapa buracos, não recolhe o lixo, não repara a luz… (riso) Lida com o imaginário e quando isso mexe com a comunidade é muito bonito. Todos os nossos projetos e espetáculos têm um sentido interventivo e atividades paralelas. Desta vez, temos, por exemplo, um conjunto de conversas abertas sobre vários temas da família. As primeiras foram realmente um encontro muito especial, com umas 30 pessoas na assistência. Sinto-me muito vivo por estar a fazer este trabalho com O Teatrão.
É importante essa perspetiva de intervenção do teatro, além do palco?
É essencial. Temos que criar um campo de forças com outro caráter e objetivos, além da indústria cultural. Se não existir essa intenção, a arte fica reduzida ao entretenimento, no sentido mais chão, mais alienante da palavra. Sem abdicar do entretenimento, O Teatrão trabalha muito com a ideia da educação, que é uma parte fundamental do projeto.
Quando surgiu O Teatrão no seu percurso?
Comecei a trabalhar com eles quase no início da companhia, quando ainda estavam no Museu dos Transportes. Um dos primeiros espetáculos que dirigi aqui foi O Círculo de Giz Caucasiano, de Brecht. Tenho um mestre, António Mercado, um encenador e pedagogo brasileiro que mora cá há algum tempo. Ele dirigia, na época, com Manuel Guerra, o curso de teatro da ESEC e convidou-me para fazer um trabalho com a escola. Pouco depois, comecei também a trabalhar com O Teatrão, porque senti uma grande identificação com a Isabel Craveiro, a Margarida Sousa e outras pessoas que estavam e ainda estão na companhia. Na verdade, acho que constituímos uma família.
O que encontrou de sedutor no teatro que se faz em Portugal?
Há aspetos incríveis, o teatro português é muito potente, os atores, em geral, são excecionais, mesmo em estruturas mais frágeis. E também os autores e encenadores. Por exemplo, vi recentemente Catarina ou a Beleza de Matar Fascistas, de Tiago Rodrigues, e fiquei maravilhado. Também tenho trabalhado com o Jorge Louraço Figueira, em Coimbra, que tem trabalhos excecionais. E há muitos outros criadores fantásticos.
Do outro lado do Atlântico, a atual cena teatral brasileira também é muito forte?
Em São Paulo é, no Rio de Janeiro tem um eixo mais comercial. E, pontualmente, há companhias e trabalhos muito interessantes no Rio Grande do Sul, no Nordeste, em Natal, e noutros sítios do país. Geralmente são coletivos, com muitas pessoas, e essa é uma característica, enquanto em São Paulo, onde existem, neste momento, mais de 300 grupos de teatro espalhados pela cidade, a cena caracteriza-se principalmente pela experimentação dramatúrgica, cénica. Também há muito trabalho comunitário e projetos muito interessantes.
Qual o último espetáculo que encenou em São Paulo?
Chama-se Hamlet 16 X 8, e estreou quando já estava em Portugal. Só consegui assistir à ante-estreia, mesmo antes de vir correndo para cá, para os ensaios de Da Família. É com o Rogério Bandeira, um excelente ator, a partir do livro de memórias de Artur Boal, chamado Hamlet e o Filho do Padeiro. Um livro muito poético que resultou num espetáculo simples, no cruzamento da vida do ator e do dramaturgo, que têm algumas afinidades, já que por exemplo o pai do Bandeira era advogado, preso político, o Boal esteve no exílio…
A seguir o que irá levar à cena com a sua companhia paulista?
Estamos a tentar viabilizar financeiramente uma adaptação de Um Homem é um Homem. É uma peça que tem uma semelhança muito grande com o Brasil de hoje, que também foi invadido por uma corja de militares. A situação está muito complicada e é bom fazer esta peça do Brecht.
E qual o projeto que se segue no Teatrão?
Ainda não decidimos, mas gostava de trabalhar sobre o 25 de Abril.