Não acha que na sua prosa continua a haver um poeta eternamente adiado?
Sou um poeta que se transformou em prosa portuguesa. Receio não ser capaz de escrever bom verso em português. Contudo, sou leitor atento e um admirador da poesia portuguesa. Traduzi bastantes poemas em língua checa. Sou, aliás, basicamente um poeta, quer como encenador, quer até como diretor de escola, quer, sobretudo, ao escrever prosa portuguesa. Quanto à poesia, escrevo em checo.
Então não é um poeta adiado. É um poeta.
Sou um poeta não adiado. Com a respetiva transferência prosaica em português.
Na Checoslováquia é reconhecido como poeta?
Sim. Pertenco à primeira linha da boa poesia checa, e assim sou reconhecido. Saiu há semanas, em Brno, um livro dos meus recentes versos. Estive presente no lançamento. Escrevi o livro depois da Revolução, numa espécie de deslumbramento: cada palavra que reencontrava se transformava em poesia. Exprime o espírito de hoje em formas de hoje. E está agora a sair uma antologia dos 40 anos de versos escritos no estrangeiro, em checo. Foi uma fidelidade difícil e discreta, sem leitor nem parceiro. Nem a minha mulher nem os filhos sabiam checo, não tinha com quem falar nem a quem mos trar o que escrevia. Escrevia e perdia, ou fechava na gaveta. Agora vão aparecer nessa antologia que terá o nome de .
Qual é a sensação de viver em terras em que não se fala com ninguém na língua materna? Que sentimento isso lhe provocava?
A princípio foi curioso. Mas em Paris havia checos. Por isso tinha possibilidades de ‘saídas’ linguísticas. Aqui, em Portugal, foi um verdadeiro ghetto linguístico.
Não convive com nenhum checo? Nem nunca aconteceu isso?
De vez em quando recebia uma visita: alguém que passava por Lisboa e sabia que eu estava aqui. Sou uma espécie de lanterna checa, farol ocidental que acena e orienta os que por cá passam. Mas são raros: duas ou três visitas por ano, quando muito. Estou sozinho e habituei-me, nesse sentido, a uma grande solidão. Porém, partilho todas as outras coisas: a minha existência tem várias camadas de comunicação possível.
Aprendeu facilmente a língua portuguesa, ou custou-lhe?
Como deve calcular, pela maneira como falo, parece que custou. Mas não. Principalmente, era-me fácil escrever. Estava aqui apenas há dois anos e três meses e comecei a tentar escrever em português aproximativo, e hoje acho que estou na posse da língua portuguesa, pelo menos da escrita. Talvez não totalmente, porque essa aprendizagem não foi de origem, mas de segunda mão; mas teve uma força específica, uma memória e uma consciência próprias – sei a primeira vez que ouvi e li uma palavra portuguesa, onde, quando, em que circunstâncias ela surgiu, discernindo-lhe já a conotação, limpando-a assim do peso morto da rotina falada.
O Listopad vive muito da memória. Não lhe parece que esse lastro de memória é excessivo?
Você o diz. Não a memória, mas a procura da memória é para mim preciosa, porque através desse processo tento assegurar a minha identidade: sem isso, corria o risco de me dissolver, abolir a minha existência, podia mesmo já ter sido morto física, existencial, linguisticamente. Eu podia não ser eu, não tendo em Lisboa ninguém que me tivesse conhecido em criança, em rapaz, em estudante, em jogador de bola, em poeta; portanto, tenho que provar a mim próprio que sou eu. E, cada vez mais, creio que dessa memória provém a ficção: memória não memorial, mas a guerra e a paz dos tempos presentes.
Ia perguntar-lhe, precisamente, onde começa e acaba a realidade na Biografia de Cristal.
Às vezes, eu mesmo já não sei. O mecanismo trabalha por mim – a imaginação do real com o possível do imaginado.