Quem pesquisar pela música de José Afonso no Spotify, ou plataforma afim, a partir de agora já vai conseguir encontrar três álbuns completos. Canções como “Vejam Bem”, “Traz Outro Amigo Também” e “Era de Noite e Levaram” já estão disponíveis para os ouvidos do mundo inteiro nas suas versões originais. Em breve muitos outros lá entrarão. Este é o facto de maior relevância e impacto do projeto de reedições das obras de Zeca através da Mais Cinco, selo criado pela família com direção executiva do produtor Nuno Saraiva.
Até agora, quem pesquisasse por José Afonso iria deparar-se com um conjunto parco de versões, como as do projeto nas Terras de Zeca, de David Zaccaria, mas nunca as originais. Ou seja, por bizarro que possa parecer, até a sua música estava apenas presente na memória de alguns e nas prateleiras daqueles que compraram e guardaram os seus discos, uma vez que as próprias edições em CD (última reedição relativamente recente, de 2013) estavam esgotadas, sem hipóteses de reedição ou reposição, uma vez que a Movieplay, anterior responsável pelo espólio e direitos da obra, declarou falência.
A disponibilização digital nas redes de streaming é o lado mais visível de um projeto vasto e cuidado, que vem colmatar uma grande lacuna na música e cultura portuguesa. Para Pedro Afonso, um dos filhos de Zeca, “a acessibilidade nas plataformas digitais é essencial para mostrar a obra a novas gerações e tratar da sua internacionalização”. Nuno Saraiva, por seu lado, explica: “A existência em streaming é essencial porque vai tornar-se possível que a obra de Zeca chegue ao mundo inteiro”.
Embora o digital seja o veículo preferencial para chegar a um público mais vasto, a obra do inigualável “cantautor” também vai ser reeditada em CD e vinil. O projeto durará pelo menos um ano e inclui 11 dos 14 álbuns originais do músico. Para já, ainda em novembro, sairão Cantares do Andarilho (1968), Contos Velhos Rumos Novos (1969) e Traz Outro Amigo Também (1970). Seguir-se-ão todos os outros discos originalmente lançados pela Orfeu: Cantigas do Maio (1971), Eu sou como a Toupeira (1972), Venham Mais Cinco (1973), Coro dos Tribunais (1974), Com as Minhas Tamanquinhas (1976), Enquanto há Força (1978), Fura Fura (1979) e Fados de Coimbra e Outras Canções (1981).
Este plano de reedições põe fim a um moroso processo, que motivou inclusive vários abaixo-assinados, perante o risco de, devido a um imbróglio jurídico, a obra de José Afonso ficar irremediavelmente indisponível, com os masters a deteriorarem-se. Tudo isso está ligado à falência da Movieplay, editora que herdara o espólio da extinta Orfeu. Os representantes da editora ainda ameaçam, de resto, colocar uma providência cautelar para impedir estes relançamentos, mas, segundo a família de Zeca, não há fundamento jurídico para tal. Acrescente-se que a falência da Movieplay, com um espólio riquíssimo, mantém em risco ou ocultos outros grandes discos da música portuguesa, que seria urgente reeditar e disponibilizar digitalmente.
A luta pela disponibilização do espólio musical de Zeca arrastou-se durante anos. Uma das mais inconformadas vozes foi Francisco Fanhais, atual presidente da Associação José Afonso (AJA). Ao JL, explicou: “Estamos muito satisfeitos por se desbloquear a situação. Congratulo-me, apesar da AJA não estar diretamente envolvida neste plano de reedições… “. A própria AJA prepara-se para reeditar, ainda este ano, o livro de partituras de Zeca, originalmente lançado pela Assírio & Alvim, que há muito estava fora de circulação.
“As novas edições permitirão a todos ouvir Zeca como nunca o ouviram”. Pelo menos é o que nos diz Nuno Saraiva, responsável técnico pelas reedições. Mesmo comparando com as lançadas há nove anos, Saraiva explica ao JL que há uma filosofia diferente: “Há uma década, era prática limpar tudo para ficar com um registo mais digital, agora o que procuramos é respeitar o original analógico, servindo-nos da tecnologia para melhorar alguns aspetos do som”. “Próximo do original, mas um pouco mais limpo”, resume Pedro Afonso. Isto é válido para todos os formatos, tanto o digital como o vinil e o CD.
E qual é a melhor forma de desfrutar da obra do criador/cantor? Nuno Saraiva não tem dúvidas: “Em vinil. O CD é um formato fracassado, já há ficheiros digitais com mais qualidade do que os CD. Eu concordo com o Neil Young — entrámos no digital cedo demais. É na versão em vinil que encontramos todo o potencial da obra”. Pedro Afonso concorda, mas acrescenta: “Contudo quisemos lançar também em CD, pois sabemos que parte do público fã de José Afonso consome música preferencialmente neste formato”.
Tal como acontece com o som, a parte gráfica tenta ser o mais próximo possível do original. O trabalho foi desenvolvido em conjunto por João Morais (designer gráfico e músico conhecido como ‘O Gajo’) e José Santa-Bárbara, autor das capas originais. Assim, o que encontramos neste discos é basicamente o que se encontrava nas primeiras edições, a nível de capa, contracapa e capas interiores.
Pedro Afonso sublinha: “Todas as edições originais foram profundamente supervisionadas pele meu pai. Ele fazia um controlo de qualidade do disco do princípio ao fim. E trabalhou sempre com pessoas com quem soube estabelecer cumplicidades, com essa contribuição artística, intelectual e política. Também quisemos fazer assim, sem acrescentar nada que pudesse desfocar do essencial”.
E a sua vontade será respeitada também agora. Isto significa que, ao contrário do que tem vindo a acontecer, por exemplo, com o retratamento do espólio de Amália Rodrigues pela Valentim de Carvalho, os discos de Zeca saem para o mercado sem elementos de contextualização histórica, musical, política ou social. “Deixamos esse trabalho para outros”, afirma Pedro Afonso, a nossa missão, para já, é a de devolver estes discos ao mercado com a máxima qualidade”.
Nuno Saraiva, que foi desafiado pela família a encabeçar executivamente o projeto, diz que além de um “privilégio”, tem sido uma descoberta. E conta que Florian Siller, o prestigiadíssimo e experiente engenheiro de som alemão que trata da remasterização, não se cansa de se surpreender com os elementos musicais que encontra.
Um dos pontos centrais deste projeto lato é de resto a redescoberta. E, muito concretamente, a internacionalização. “A obra de José Afonso é conhecida em Espanha, e também em França e na Alemanha, mas falta tudo o resto”, diz o filho do músico confessando a convicção de que com a disponibilização das canções nas plataformas esta possa chegar longe. A Mais Cinco não esconde o objetivo de conquistar os ouvidos e o coração de músicos de várias latitudes, e de eventualmente lançar alguns desafios. Mas nada disso é para já.
Outra ponte necessária é com as gerações mais novas. Naturalmente que a disponibilização digital torna mais fácil o conhecimento da obra. Seria desejável que tal se pudesse transformar em algo mais, como aconteceu em 1993 no espetáculo Filhos da Madrugada, em que as grandes bandas do rock português celebraram a música de Zeca. Pedro Afonso considera: “A música do meu pai ainda não foi devidamente apropriada pelas linguagens musicais das novas gerações. Há todo esse caminho a fazer”
Tudo isto poderá acontecer no futuro, com a participação direta ou indireta da família. Para já, além das edições fonográficas, também está a ser preparada a reedição dos escritos poéticos (musicados e não musicados) do criador: “Há uma certa urgência e oportunidade para tornar a obra mais apetecível e mais fielmente disponibilizada. É a nossa missão. Há toda uma contextualização que deve ser feita. Gostávamos de trazer cada vez mais pessoas para uma rede de ações e pequenos projetos. Se isso for conseguido, seria o ideal”, diz Pedro Afonso. E acrescenta: “O meu pai acreditava muito nesse tipo de abordagem. E também na capacidade que a música tem de transformar as vidas das pessoas. Nós acreditamos nisso também”.