Não hão de faltar as cabeleiras com caracóis a metro, os vocalizos desmedidos e outros “trejeitos” operáticos, mas o tom é “natural e divertido”. Uma “comédia”, em que se brinca com “elementos da ópera clássica e barroca ou das novas tecnologias”, como adianta o encenador Ricardo Neves-Neves. “Uma ópera do nosso tempo”, diz o compositor Martim Sousa Tavares, “e profundamente enraizada, numa relação construtiva com a história e a tradição.” O novo espetáculo do Teatro do Eléctrico, O Anel do Unicórnio, pretende abrir uma porta” de entrada” para o bel canto ao público de palmo e meio.
Com libreto de Ana Lázaro, tem no elenco os cantores Cátia Moreso, Sílvia Filipe e André Henriques, o ator André Magalhães, acompanhados pelo ensemble com os músicos, David Silva, Ana Aroso, Francisco Cipriano, Mrica Sefa, Miguel Menezes, Helena Silva e Vasco Sousa.
Depois da estreia, no Cineteatro Louletano, a ópera em miniatura será apresentada no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, de 25 a 27, em Lisboa, No Teatro Lu.Ca, de 3 a 19 de dezembro, e no próximo ano passará por Ovar, Ílhavo e Odivelas, entre outras escalas, numa digressão pelo país.
Em dezembro, Martim Sousa Tavares irá fazer, por outro lado, a direção musical do novo espetáculo do Teatro do Vão, Vita & Virginia, com encenação de Daniel Gorjão, que se vai estrear no Teatro S. Luiz, em Lisboa, no ciclo Um Coração Normal. E tem feito música para cinema, dança, exposições. “Acho interessante essa ideia de fazer música, quase como um alfaiate”, confessa. “Já existe tanta música de outros que merece ser ouvida que não tenho grande urgência em acrescentar a minha.”
Jornal de Letras: Como surgiu a ideia de fazer uma ópera para crianças?
Ricardo Neves-Neves (RNN): Eu e o Martim conhecemo-nos quando fizemos A Menina do Mar, no centenário de Sophia, que teve uma temporada grande no Teatro Lu.Ca, que era a antiga Ópera Real. Juntando a história do que foi e o que é no presente, um teatro com uma programação para o público infanto-juvenil, e seguindo o mote que nos deu Susana Menezes, pensámos fazer uma ópera em miniatura.
Não houve também a intenção de incentivar o gosto pela ópera num público mais jovem?
Martim Sousa Tavares (MST): Rapidamente constatámos que não há assim tantas óperas infantis. Optámos por uma nova criação e a ideia foi inseri-la numa longa linhagem operática, portanto que se relacione com um reportório pré-existente, e seja uma porta de entrada para outras óperas. O facto de ser para um público infantil leva-nos a ter algumas atenções especiais.
Tanto mais que a ópera é muitas vezes vista como difícil, elitista, pouco atrativa?
MST: Claro que tem que fazer sentido na relação com a História da ópera e ao mesmo tempo ser inteligível. Tem uma lógica aristotélica, passa-se num arco de 24 horas, no fim resolve-se tudo, é uma comédia de enganos ao estilo do séc. XVIII, há todo esse formalismo, mas apresentado com leveza, de uma forma natural. Porque queremos que seja convidativa, uma experiência positiva, nada desse elitismo. Para isso, já basta o estado em que está a ópera em geral.
Que estado é esse?
MST: Não quer dizer que não haja iniciativas interessantes, como o OperaFest. Mas é um nicho dos nichos da música clássica, que é a mais conservadora de todas as artes. Encontrar um compositor que não seja homem, branco e já morto é muito difícil. Já sabemos que agora vem o Natal e o Quebra-Nozes, depois o Messias, do Händel, no ano novo, as valsas do Strauss.
Sempre mais do mesmo?
MST: É muito previsível. Basta ver que nas mil e tal salas de ópera de todo o mundo, dificilmente há uma temporada em que não haja um destes autores “blockbusters”, Mozart, Verdi, Puccini, Wagner. É como se um Teatro Nacional todos os anos tivesse que pôr em cena Shakespeare ou Gil Vicente. Há um anacronismo. No teatro, na literatura, na pintura, há uma relação muito mais viva e vibrante com a atualidade do que na ópera.
Não se ousa programar a ópera contemporânea porque não parece conquistar tanto o público?
MST: O problema começa com o uso da palavra contemporânea. É um termo que ficou para sempre ligado a uma corrente, no pós-guerra, muito vanguardista e radical, que virava as costas ao público, numa pesquisa muito intelectualizada. Uma estética que vem da Alemanha e de França, que tem os seus seguidores e não nego evidentemente o direito a existirem. A questão é que quando as pessoas ouvem falar de música contemporânea ainda a associam a essa espécie de trauma coletivo. Por isso, prefiro dizer que O Anel do Unicórnio é uma obra do nosso tempo. A palavra “whatever”, que é dita pelo nosso protagonista aos pais, num revirar de olhos, não poderia estar numa ópera de Mozart, por mais que um encenador lhe quisesse dar essa frescura. Para nós é muito bom poder trabalhar sobre um texto escrito agora, que reflete o agora.
A personagem que protagoniza o Anel pode dizer-se que nasceu em berço operático.
RNN: E acaba por ser quase o ponto de vista dos nossos espectadores, na medida em que a distância e a estranheza que possam ter em relação à ópera tem uma representação na aversão do Pedro Patê, cujos pais são cantores líricos e, por isso, decide ser ilusionista. Mas, no final, acaba por partilhar connosco que viver dentro de uma ópera não é assim tão mau…
Há alguma afinidade do compositor e do encenador com o protagonista?
MST: Sinto uma grande afinidade. Quando era criança, via os filmes da Disney e detestava os momentos em que todos cantavam [riso]. A pessoa lógica em mim não conseguia perceber como, de repente, todos sabiam a letra. E ainda hoje me irritam um bocadinho filmes como o My Fair Lady… É natural que a pergunta que os jovens fazem em relação à ópera seja a mesma que faz o nosso personagem: por que raio estão eles sempre a cantar? [riso]
RNN: Quando fiz uma peça sobre a Mary Poppins, abordava essa questão de comunicar a cantar ser como comunicar a falar. Ao contrário do Martim, nunca tive essa estranheza. Esses eram momentos de êxtase e de euforia nesses filmes (riso).
MST: Não gosto do reportório por inteiro, mas sempre gostei muito de algumas óperas. É um dinossauro que ainda está vivo. E é quase um milagre como a ópera consegue sobreviver no tempo da Netflix e de coisas mais imediatas, superficiais e coloridas. Foi um tiro no escuro da parte de quem acreditou em mim para o fazer, porque não tenho nenhuma ópera no meu catálogo. Mas todas as coisas têm a sua primeira vez em algum momento da nossa vida.
Começa a haver interesse na ‘renovação’ da ópera?
MST: Sem dúvida. Nós não estamos a inventar a roda, a questão é que a criação contemporânea da ópera é marginal, porque há um núcleo duro regido pela tradição, no próprio meio, em que o reportório antigo não cede espaço ao novo, não há regeneração.
RNN: Apesar de tudo, acho que estamos a entrar numa zona talvez um pouco mais descomplexada em relação à ópera, como aconteceu com a dramaturgia portuguesa há uns 10, 15 anos. Foi uma altura em que havia encenadores e atores que escreviam pela primeira vez textos teatrais. Sem pudor. Também comecei assim. E houve um grande salto. E acho que também se sente uma mudança em relação à ópera, sobretudo a vontade de misturar várias disciplinas. Acho que existem hoje mais óperas, mais cantores, libretistas, compositores. Começo a ver sinais de renovação. Talvez haja também um despudor que acho muito positivo.
Já encenou outras óperas.
RNN: Bastien e Bastienne, de Mozart e Canção do Bandido, de Nuno Côrte-Real e Pedro Mexia. E em fevereiro irei coordenar a primeira edição do Laboratório de Ópera que o CCB vai lançar. Vou trabalhar com o pianista e compositor Filipe Raposo e um elenco de cantores e fazer uma encenação a partir de Gil Vicente.
O que o seduz na ópera?
RNN: Não sei ao certo. Sinto uma espécie de alegria, por não saber bem como as coisas são e começar a brincar, a descobrir. Quando fizemos o Hamster, mais perto da dança, sem palavras, o oposto do que andava a fazer, também o senti. O meu fascínio pela ópera liga-se muito à palavra cantada, ao facto de haver música do primeiro ao último momento. Interessa-me como a música influencia e direciona, dá ideias para a encenação, para o trabalho de toda a equipa. E a vontade é sempre de fazer um espetáculo ao vivo. Esse é o grande trunfo do teatro, por isso não morre, mesmo com todas as plataformas de streaming.
Interessa-lhe essa arte total, Martim?
MST: Acho que Wagner iria aplaudir as soluções técnicas e tecnologias que usamos nesta ópera e que não podia incluir na sua visão da arte total, porque ainda não existiam esses softwares. A minha visão vai mais no sentido de quem olha para uma coisa passada, portanto quase com uma certa nostalgia para um género que tinha os seus trejeitos. Isso não é novo, o Stravinsky já fez uma paródia sobre a ópera do séc. XVIII. Acho giro lembrar um certo excesso operático e exacerbá-lo. Brincamos com o clichê do excesso barroco de uma cabeleira com 80 centímetros de caracóis e uma nota que, em vez de durar o tempo da sílaba, é um enorme vocalizo, mas não temos a ambição de transmitir profundos significados.
Também é uma brincadeira provocatória o próprio título, uma referência à obra wagneriana?
MST: Não o pensámos dessa forma. Mas quando me dei conta achei muita piada, porque Wagner era o autor da ambição desmedida, com a sua tetralogia do Anel, o gigantismo máximo, e a nossa é uma ópera em miniatura. Acho divertido que O Anel do Unicórnio seja uma resposta ao Anel do Nibelungo.
O que foi essencialmente desafiante na composição do Anel?
MST: Quando falámos da atenção ao público-alvo, nunca pensámos em reduzir a um nível muito básico. Nada disso. Quis que certos ingredientes estivessem presentes, que houvesse citações diretas do reportório operático, mas também de disco, dos anos 80, de chanson française, dos anos 40, algo de clássica, de música de todos os dias, que as pessoas ouvem na rádio, em casa, nas lojas, e alguns gestos da música contemporânea, que o público talvez nem dê por eles, porque vão de mãos dadas com a cena. O que tentei foi que fosse um panorama sonoro variado, mas de acordo com a história que é narrada. A música que escrevo não é a expressão dos meus sentimentos, mas de um texto.
RNN: E há também uma forte componente plástica, nesta ópera, com os cenários de Henrique Ralheta e os figurinos da Rafaela Mapril, que gostava de sublinhar. Brincamos com elementos da própria moda, da ópera clássica e barroca às novas tecnologias.
Do ponto de vista da encenação, qual foi a preocupação?
RNN: Comecei a trabalhar já com a noção de que tanto o texto como a música tinham um grande sentido de humor. Isso permitia-prosseguir no universo do nonsense e do absurdo, que tenho trabalhado nos últimos espetáculos.
Uma aposta na comédia?
RNN: É uma pequena bandeira mostrar que a comédia não é um género menor e que é possível fazer um trabalho sério, com grandes profissionais. Por outro lado, a nossa vontade no Teatro do Eléctrico é continuar a trabalhar a ficção, que parece um pouco desvalorizada. E mais reportório musical já existente ou novas criações, como temos feito. Já estamos a pensar, com o compositor e pianista Filipe Raposo, dar continuidade, por exemplo, ao espetáculo Banda Sonora.
A Menina do Mar foi um espetáculo musical e foi apresentado por todo o país.
RNN: Fizemos já 54 apresentações, iremos ainda levá-lo em fevereiro aos Açores e estamos abertos a mais solicitações.
Para o Martim, tem um significado especial fazer a direção musical neste espetáculo, criado a partir de uma obra da sua avó, Sophia de Melo Breyner?
MST: Até tive uma certa frieza ao dirigir, fiz o que fui treinado e costumo fazer. O espectador em mim, esse sim, tem uma ligação diferente, emocional, muito forte, porque é um conto da minha avó.