Ao ser-lhe atribuído, nesta sua 33.ª edição, o Prémio Camões, Paulina Chiziane (PC), uma voz maior da literatura de Moçambique, que vê justamente reconhecida a carreira iniciada em 1984 com a publicação de contos em jornais e revistas do seu país. Mas é com Balada de Amor ao Vento (1990), o seu primeiro romance, que se dá a conhecer a um público internacional. Seguiram-se, publicados todos pela portuguesa Editorial Caminho, Ventos do Apocalipse (1993), O Sétimo Juramento (2000), Niketche. Uma História de Poligamia (2002) e O Alegre Canto da Perdiz (2008); e, com a chancela de editoras moçambicanas, um livro de contos intitulado As Andorinhas (2009) e um conjunto de obras de difícil classificação, Por quem vibram os tambores do além? (2013); Na Mão de Deus (2013); Ngoma Yethu – O curandeiro e o Novo Testamento (2015), escritas a várias mãos, que relatam experiências sobrenaturais protagonizadas por curandeiros e espíritas. Para além das edições em língua portuguesa (com uma forte presença no Brasil), a sua produção romanesca encontra-se traduzida em francês, italiano, alemão, sérvio, espanhol e inglês.
Da autora, é comum apontar-se o facto de ter sido a primeira romancista moçambicana, designação que contesta, explicando: “Dizem que sou romancista e que fui a primeira mulher moçambicana a escrever um romance (Balada de Amor ao Vento), mas eu afirmo: sou contadora de estórias e não romancista. Escrevo livros com muitas estórias, estórias grandes e pequenas. Inspiro-me nos contos à volta da fogueira, minha primeira escola de arte”. Pode-se agora acrescentar a esse feito este não menos notável de ser a primeira mulher africana a receber o maior galardão da literatura em língua portuguesa.
É, hoje, consensual afirmar que a literatura ocupa um lugar singular na construção da identidade das nações, trazendo para a ficção a representação de um tempo experienciado, na qual se inscreve a identidade cultural de uma nação. São vários os estudos (com destaque para as teorias de Paul Ricoeur, Hayden White, Walter Benjamin ou Walter Mignolo) que afirmam o diálogo entre a historiografia e a literatura e o contributo fundamental do texto literário enquanto meio privilegiado de construção da identidade dos povos, questão particularmente premente em contexto pós-colonial.
Num texto de 2016, Mia Couto (Prémio Camões em 2013) escrevia: “A literatura pode ajudar este processo de construção de uma nação moderna no tempo de hoje. A literatura pode dar acesso a esta pluralidade de identidades dizendo: olha, elas podem falar umas com as outras contando histórias e dando espaço a que essa grande história possa contar essas versões”. Uma viagem pelos romances de PC (centrar-nos-emos nos editados em Portugal) desvenda-nos uma obra percorrida por uma mesma temática, a da representação da identidade moçambicana, uma obra onde encontramos as outras histórias de que fala Mia Couto, com a particularidade de serem observadas e contadas a partir de um ponto de vista triplamente diferenciado, o de uma mulher africana negra.
Com efeito, no conjunto de autores que elegem como tema central da sua escrita a demanda da representação identitária da nação, a obra de PC ocupa um lugar singular, trazendo para os entrechos uma visão feminina e confessional dos acontecimentos, vistos e narrados a partir de um lugar marcado por modalizações inerentes à nacionalidade, aos posicionamentos políticos, aos ideários que defende, acrescido da questão do género.
Centrando-se na vida de mulheres, Chiziane propõe aos seus leitores a discussão de questões ousadas e inquietantes que percorrem a sociedade, numa revisitação de temas como a poligamia, as tradições ancestrais, o racismo, a feitiçaria. As narrativas, alicerçando-se na releitura do papel central da mulher na sociedade moçambicana, trazem vozes tantas vezes silenciadas. Sobre esta questão António Manuel Ferreira, num artigo paradigmaticamente intitulado “Adão e Eva na obra de Paulina Chiziane” (2012) considera que, “desde Balada de Amor ao Vento até a O Alegre Canto da Perdiz, toda a narrativa de Chiziane vem trabalhando, de forma obsidiante, um núcleo coeso de questões que têm sempre, como motivo dinamizador, o estatuto sociocultural da mulher moçambicana”.
Ancorando-se na realidade de um país, os textos de PC retratam um país em constante mutação, cuja mundividência está marcada pelo complexo e traumático processo de colonização e de descolonização. Os textos encenam os dilemas da existência daqueles que vivem in-between, retomando o conceito apresentado por Bhabha (2007), ou seja, aqueles que vivem divididos entre as tradições que os ligam ao passado e uma particular modernidade herdada do sistema colonial, dando origem a uma sociedade eminentemente compósita e miscigenada, culturalmente híbrida.
Da galeria de personagens complexas e intrigantes que desfilam nas narrativas, David, o protagonista de O Sétimo Juramento, apresenta-se como exemplo paradigmático dos que vivem de modo mais completo e intenso uma dilaceração identitária resultante do cotejo conflituoso das heranças ancestrais e das práticas europeias, representadas metonimicamente pelas memórias de dois modos diversos de contar: “David pensa na moral. Nos contos ao luar ou à volta da fogueira, contados pelo avô, falecido nos tempos que já lá vão. Recorda os fundamentos da doutrina cristã. As lições da cartilha maternal de João de Deus. As fábulas de La Fontaine”.
O outrora jovem revolucionário é agora quadro superior de uma empresa, traindo pelo caminho os ideais que o levaram à luta pela independência. A ânsia de poder leva-o a procurar ajuda de um feiticeiro diante de quem fará o seu sétimo juramento, tornando-se desse modo outro, porque nele coabitam duas realidades.
Com relevância diegética diversa, o tema da espiritualidade tradicional moçambicana percorre as obras da autora, nas suas várias concretizações, a romanesca, a ensaística e a que poderíamos identificar como testemunhal, aqui englobando as últimas, escritas em coautoria, nas quais essa problemática é central. As personagens oscilam entre a ocidentalização de práticas e de costumes e o reatar com as tradições ancestrais consubstanciado no recurso a curandeiros e feiticeiros para a resolução de conflitos ou de mediação para o mundo dos espíritos.
Em Niketche, as personagens femininas recorrem às práticas sobrenaturais de curandeiros e feiticeiras para contrariar a poligamia. Disso nos dá conta Rami que, quando confrontada com esse drama, é instigada a recorrer a feitiços, “a correntes espirituais, com batuques, velas e rezas”, enquanto a vizinha insiste em levá-la ao seu curandeiro. Em Balada de Amor ao Vento, a alma do defunto é encomendada à vez por um padre católico e um feiticeiro angolano, e em Ventos do Apocalipse os feitiços que se abatem sobre os habitantes são atribuídos ao chefe da aldeia.
A coabitação, por vezes dilacerantes, entre ensinamentos europeus e tradições africanas está ainda presente na discussão de uma temática indelevelmente associada à literatura pós-colonial e que PC aborda sem assombros nem rodeios nos seus textos. Referimo-nos às diferentes manifestações do racismo, não apenas as circunscritas ao período colonial e às relações entre colonizador e colonizado, mas sobretudo às que perduraram na nação independente, constituindo-se como reprodução das vividas em contexto de domínio colonial.
O tema inscreve-se em toda a sua obra, trazendo para as efabulações a denúncia dessa forma de descriminação. Pela voz do narrador de Balada de Amor ao Vento surge a crítica aos que assumem, reproduzindo-as, as atitudes de domínio e opressão outrora sofridas: “Os pretos gritavam para outros pretos como se pretos não fossem. O escravo liberto torna-se tirano”.
Nesta sociedade fortemente hierarquizada, são muitos aqueles que vivem espartilhados entre dois mundos e que procuram ascender na escala social pelo viés da raça. Essa aspiração é verbalizada, no seguinte excerto, pelos dois filhos de Delfina, uma das protagonistas de O Alegre Canto da Perdiz: “- Mãe, por que me fez preto? ‒ pergunta o Zezinho ‒, eu também quero ter uma pele clara como a Jacinta ou meu pai branco. / ‒Ah, Zezinho, se eu pudesse adivinhar o futuro, não teria casado com o vosso pai, esse preto, esse pobre! / ‒Pai, por que me fez com uma preta? ‒ pergunta Jacinta. ‒ Eu queria também ter uma mãe branca, para ser igual à sua outra esposa”.
Enquanto Zezinho, filho de mãe e pai negros, lamenta não ser mestiço, a irmã, filha de mãe negra e pai branco lastima-se por ser mestiça. Se por um lado a existência do mestiço surge como símbolo da possibilidade, em devir, de união entre dois mundos, podendo-se constituir como ponte cultural e afetiva, essa dimensão é praticamente inexistente nas obras de PC, surgindo antes como a representação de sentimentos de não-pertença e exclusão social.
A propósito da descrição de uma velha contadora de histórias, o narrador de O Alegre Canto da Perdiz sentencia: “Contar uma história significa levar as mentes no voo da imaginação e trazê-las de volta ao mundo da reflexão”. Este comentário aplica-se na perfeição aos romances de Paulina Chiziane, a exímia contadora de histórias. Pela mão e voz da autora somos levados numa viagem entre culturas e tradições que inquieta e desassossega, porque nos desafia a caminhar ao encontro do Outro e nele nos reencontramos.