Em Julho de 1946, o Conselho Nacional da Resistência (CNR) realizou na Sorbonne uma conferência europeia sobre a Resistência ao hitlerismo. Louis Saillant, que presidiu ao CNR, escreveu que na oportunidade desse reencontro, a Resistência europeia se revelara como o conjunto das Resistências nacionais, interrogando-se: mas Resistência a quem e contra quem?
Em seu entender a Resistência surgira como “um facto e uma realidade histórica” que originara idênticos sacrifícios populares, constituindo testemunho da luta contra os mesmos inimigos e adversários no continente europeu, a qual ganhara maior grandeza por motivo das diversidade e particularidades das múltiplas situações nacionais.
Em França, como sublinhou Saillant, os inimigos principais haviam sido, pela identidade de propósitos, o ocupante nazi e o colaboracionismo.
Com o país ocupado por uma potência inimiga estrangeira, e o governo em Vichy dedicado a entender-se com o invasor, colocou-se naturalmente o imperativo de ser dada unidade e comando à Resistência, muito pulverizada, desde logo como pressuposto da credibilização, externa e interna do Comité Francês de Libertação Nacional presidido por Charles De Gaulle a partir da capital britânica.
Foi precisamente à direção no terreno desse plano de unificação que De Gaulle chamou Jean Moulin (“Max”, “Rex”, “Joseph Mercier”, “Joseph Jean Mercier”), cuja história pessoal acabaria por se confundir com a da Resistência como notou Jacques Bounin.
Jovem autarca de Eure-et-Loir, antigo diretor do gabinete de Pierre Cot enquanto ministro do Ar do governo de Léon Blum — ambos pessoalmente envolvidos durante a Guerra Civil de Espanha no apoio aos republicanos —, Moulin dera provas recentes de heroica resistência pessoal às determinações das tropas invasoras. Com efeito, recusara-se a prestar um testemunho falso sobre a responsabilidade de crimes de guerra que tinham sido cometidos pelas forças inimigas. Visado como alvo a abater, Moulin acabaria por passar à clandestinidade.
Aquela mencionada convocatória de De Gaulle levou Jean Moulin a deslocar-se a Londres, viajando de comboio através de Espanha, tendo Lisboa como primeiro destino. Havendo registo e até prova testemunhal da sua permanência em Lisboa, a verdade é que não se encontrou no magnífico arquivo diplomático português rasto de qualquer documento relacionado com essa viagem.
Quando Jean Moulin partiu de França ao encontro de De Gaulle no mês de Setembro de 1941, Caeiro da Mata era já ministro plenipotenciário em Vichy, sendo encarregado de negócios Carlos Pedro Pinto Ferreira. Em Paris desempenhava funções de cônsul-geral António José Alves Júnior; José Manuel da Silva Bettencourt Ferreira tinha a seu cargo o consulado de Bordéus — do qual fora afastado Aristides de Sousa Mendes — e Emílio Patrício e José Augusto de Magalhães desempenhavam iguais cargos, respetivamente em Vichy e Marselha.
As autoridades diplomáticas de Portugal não tiveram, porém, qualquer intervenção no processo de concessão de visto a Jean Moulin (“Joseph Jean Mercier”), tendo este viajado com um visto concedido pelo cônsul checo em Marselha Vladimir Vochoc, processo que teve a intervenção do seu homólogo dos EUA na mesma cidade francesa, Hugh Fullerton.
Jean Moulin regressou ao interior de França a 31 de Dezembro de 1941/1 de Janeiro de 1942, com um mandato formal de De Gaulle. Designado como representante do general e delegado do Comité Nacional Francês para a “área não diretamente ocupada na metrópole”, foi encarregado de alcançar nessa zona a “unidade de ação” de todos quantos resistiam ao inimigo e aos seus colaboradores. E ficou expressamente estabelecido que, sobre essa missão, Moulin reportaria diretamente a De Gaulle.
A 27 de Maio de 1943, Jean Moulin sela em Paris a constituição do Conselho Nacional da Resistência (CNR) tornando-se o seu primeiro presidente. Entretanto voltara a Londres, aí tendo recolhido a renovação de confiança por parte de De Gaulle.
Consciente dos riscos que corria, dos quais deu tocante testemunho sua irmã Laure, no momento em que se preparava para designar um sucessor da sua confiança, é preso e torturado pela Gestapo em Lyon com intervenção direta de Klaus Barbie.
Entre nós, Alves Redol, foi possivelmente autor de uma das primeiras referências a Moulin escritas em português. No seu livro A França, Da Resistência à Renascença, que disse ter sido publicado “sob o patrocínio moral do Departamento das Relações Culturais do Ministério dos Negócios Estrangeiros e da União Nacional dos Intelectuais da França”, Redol sublinhou a ação organizativa dos operários na CGT clandestina e nos FTP (Franco-Atiradores e Partidários) devida a Jean Moulin, referindo ainda:
“Max [Jean Moulin] acumulava as funções de presidente do CNR e de delegado da CFLN. Após a sua prisão, os dois cargos foram divididos e Georges Bidault (Jean Jacques na Resistência) assegurava a presidência do CNR, enquanto Bollaert (Baudoin na Resistência) é designado para a delegacia do “Comité” Francês da Libertação Nacional. Preso este também, coube a Parodi (Cérat) o cargo da delegação do organismo em Londres”.
As responsabilidades de organização da Resistência, mas, porventura, sobretudo, o critério da sua liderança, colocaram a vida de Jean Moulin em máximo risco. A sua morte às mãos do inimigo, facilitada por um ato de traição poucas semanas após o momento fundacional do CNR, está envolvida em mistério. Henri de Kérillis, que de muito próximo passou a inimigo de De Gaulle, aludiu às mortes do capitão d’Estienne d’Orves e de Jean Moulin, para as comparar, escrevendo a respeito deste último.
“Jean Moulin tinha vindo de França para Londres, escondido sob o nome de M. X…. para receber ordens do general De Gaulle relativas à organização da Resistência em França. O general de Gaulle nomeou M. X…. como membro do Comité Nacional Francês, apresentou-o às mais altas autoridades inglesas, e utilizou a sua presença na capital inglesa para apoiar a tese de que ele, general de Gaulle, era o líder reconhecido da Resistência. Depois mandou trazê-lo de volta para França. Os alemães, misteriosamente avisados, prenderam imediatamente Jean Moulin, torturaram-no e executaram-no.”
Neste quadro nebuloso se inscreve também a tese — posta a circular por Henry Frenay em La Nuit Finira —, jamais comprovada, segundo a qual Jean Moulin não era mais do que um agente do partido comunista destinado a manipular a Resistência. E muito significativa é, também, a interrogação de Louis Saillant:
“O que teria acontecido se, em vez de Georges Bidault, o primeiro presidente do CNR, Jean Moulin tivesse estado connosco no dia 25 de Agosto, ao fim da tarde, para dar as boas-vindas ao general De Gaulle na Câmara Municipal em Paris? O enigma permanecerá. Ninguém pode relatar o que não aconteceu. Mas o fundador do CNR, traído em pleno combate, depois torturado até à morte pelos nazis, infelizmente já lá não estava.”
Só a 19 de Dezembro de 1964, quando haviam passado mais de vinte anos sobre a libertação de Paris, as cinzas de Jean Moulin, “le visage de la France”, foram simbolicamente depositadas no Panteão.