Em A Metamorfose dos Pássaros, Catarina Vasconcelos traça um trilho poético pela sua ascendência, cheio de ausências e fantasmas, imagens sugestivas, falsas e verdadeiras memórias, em busca de raízes, de si própria, de mistérios familiares. E, quando não sabe, inventa… Servindo-se da liberdade artística proporcionada por um cinema de autor(a). O filme partiu de um projeto de documentário, mas transformou-se em algo bastante mais difícil de catalogar: um retrato de família, um ensaio introspetivo, uma ficção do real ou, parafraseando O’Neill, uma coisa em forma de assim.
Certo é que A Metamorfose dos Pássaros é um filme declaradamente poético, em que o minucioso cuidado estético de cada imagem rima com a qualidade literária do texto. Há quase uma overdose de poesia. Mas o remanescente é a procura, a autodescoberta, a relação com a morte e a tentativa de compreender ou questionar o sentido da vida através do cinema. No filme, a realizadora parte em busca da história e das memórias familiares, em volta dos avós e da mãe, numa recriação sensível de um certo universo, em que o que se sente se sobrepõe a factos e acontecimentos.
Este caminho, de resto, já havia sido apontado na curta-metragem que lhe antecedeu, Metáfora ou A Tristeza Virada do Avesso, em que alguns elementos coincidem, mas versa acima de tudo sobre o luto pela morte da mãe.
E se em ambos os filmes se destaca a qualidade pictórica, tal está intimamente ligado ao percurso da própria realizadora, que descobriu o cinema tardiamente, após a passagem por diferentes artes. Nascida em Lisboa, em 1986, Catarina começou por estudar música, logo a partir de criança, até descobrir o seu caminho nas Belas Artes – e acabou por tirar um mestrado em antropologia visual. Foi por aqui que descobriu a rota para o cinema. Cursou no Real College, tirando Comunicação Visual. Nesse contexto fez a primeira curta, trabalhada em super 8, premiada no prestigiado festival Cinema du Réel 2014. E é depois que faz este A Metamorfose dos Pássaros que será, no mínimo, a mais auspiciosa estreia portuguesa desde que Pedro Cabeleira, em 2017, apresentou Verão Danado em Locarno.
JL: A Metamorfose dos Pássaros, tal como a curta que o antecede, envolve uma grande exposição pessoal, para qual é necessário uma certa coragem. Como aconteceu começar a fazer cinema partindo tão do lado de dentro?
Catarina Vasconcelos: Estava a estudar em Londres quando fiz a curta. A troika estava em Portugal. Lembro-me do Ministro da Educação ter pedido aos jovens para emigrarem e o da Saúde para que os portugueses não ficassem doentes. Ao mesmo tempo fazia 10 anos da morte da minha mãe. E isso estava-me a assombrar. Durante esse ano trabalhei muito sobre o que o era o 25 de abril e o que me faltava, que metade era esta que ja não existia em mim referente à minha mãe. Além disso, e passando para A Metamorfose dos Pássaros, a relação com a morte é um tema que me inquieta muito, apesar de ser extremamente banal. E aí só poderia falar do ponto de vista pessoal. Nem sequer vi como uma questão de coragem, mas como o único caminho a tomar.
Mas teve o texto como base?
No primeiro tinha base de texto que fui escrevendo ao longo de muito tempo. Na Metamorfose já não foi bem assim. Havia um guião em que eu ia descrevendo de forma quase obsessiva as cenas, com pequenas notas da voz off. As imagens foram estruturais. Fizemos uma primeira montagem e eu passei cinco, seis meses sozinha a fazer um puzzle para mudar coisas. Só depois escrevi o texto, que se ancora nas imagens. Sempre tive o desejo que o filme tivesse um lado polifónico, das várias vozes que se entrelaçam, tal como os pensamentos e a mistura de ficção e realidade.
No seu percurso, começou por onde?
Comecei por estudar música aos 7 anos, fiz o conservatório. Depois fui para Belas Artes e fiz teatro, no grupo do técnico, experiência muito importante… Terminadas as Belas Artes estudei Antropologia Visual, onde se deu o primeiro contacto com o cinema documental. E, de seguida, parti para o Royal College, em Londres, para tirar o mestrado em Visual Communication. Lá comecei a filmar em super 8. O meu interesse estava mais numa exploração do meio do que em questões narrativas. A Metamorfose… também tem esse lado da exploração das imagens.
O filme tem ingredientes daquilo que na literatura agora se chama autoficção…
Queria fazer um documentário e depois confrontei-me com a realidade, através do contacto com as pessoas que me poderiam dar os ingredientes para fazer o documentário. Essas pessoas são a minha família – o meu pai, os meus tios. Nas conversas longas que tinha com eles ficava sempre com a sensação de que havia algo por dizer, um mistério, um segredo. Essa ideia perseguiu-me. Mais tarde vim a perceber que não havia segredo nenhum, que há coisas que não são ditas em todas as famílias. Mas isso deixava-me um problema: se havia coisas de que não sabia como poderia tratar delas? Pensei, se não sei invento. A autoficção está por isso relacionada com os ingredientes do próprio filme. Mas ajudou-me. Não tenho a necessidade de dar uma só realidade. A Beatriz é uma quase ficção que se aproxima da minha própria realidade, porque nunca conheci a minha avó. É uma forma de contar a história de alguém que não conheci e recontar a minha própria história.
Tudo isso veste o filme de uma grande hibridez… Tal não a preocupa?
A sociedade tem uma grande necessidade de rotular coisas. Não sei até que ponto isso nos ajuda. Cada vez faz menos sentido ter esse tipo de rótulos no cinema. Eu própria não sei que filme é este. Parte de uma raiz documental, depois o resto foi com ele, o filme decidiu ir por ali, tal como os filhos quando crescem.
Tem uma estrutura visual muito cuidada, muito tratada, que até poderia integrar uma exposição e que tem muitas vezes um lado lúdico, capaz de surpreender em cada nova cena… Como foi desenhar isto tudo?
Lembro-me de ter uma aula com o Brian Eno, em Londres, em que ele disse que os artistas desejam ser crianças para sempre. Nunca me esqueci disso. Esta ideia de se poder brincar com o mundo e com as imagens falando de coisas que são muito sérias. Isso consegue-se sentir quando se olha para história da pintura. O Petrus Christi tem um retrato de um monge em que coloca na base uma mosca. O meu percurso influencia profundamente a forma como as imagens estão trabalhadas. O diretor de fotografia, Paulo Menezes, também estudou pintura. O filme foi trabalhado como se estivéssemos num atelier.
Só que foram 200 quadros de seguida…
[Risos] É quase obsceno…. Cada uma das imagens tinha de trazer alguma coisa. Há uma frase de Dostoievski que me persegue: “A beleza vai-nos salvar”. A frase irritava-me porque eu pensava que a beleza nunca salvou o mundo de ter una guerra ou de construiu um campo de concentração. A beleza é muito perigosa. Mas há algo que a beleza, ou a arte, pode trazer, que é o transcender de determinada violência. Pode falar-se de algo altamente devastador e elevá-lo ou trazer-lhe esta transformação pela arte. Senti a necessidade de poder ter isso em cada quadro. A ideia de que vai existir uma perda começa logo a estar presente, no pássaro que morre, na mão que faz orações por um dia já não estar cá… Os quadros uns atrás dos outros é uma catarse através das próprias imagens
O que se aplica à imagem também se aplica à escrita, que também é poética, literária, cuidada… De onde é que isso vem?
Se o texto é bom, o mérito é das coisas que li. Sempre li muito. O currículo de português na escola não dá tréguas e aquilo encantou-me. Quando comecei a estudar Fernando Pessoa achei que ele escrevia de propósito para mim… A escrita sempre me ordenou o pensamento.. A voz off também organiza as ideias do próprio filme. E houve leituras que fiz especificamente para o filmes, como As Novas Cartas Portuguesas.
E também viu filmes. Quais foram as referências visuais?
Sempre me encantou a sinceridade e simplicidade nos meios e genialidade no pensamento da Agnés Varda. Há realizadores que persigo como o Tarkovsky, o Vitor Erice. Fiquei abismada quando vi O Movimento das Coisas [de Manuela Serra], mas só o vi depois do meu filme estrear. Ela toca no Trás-os.-Montes, e para mim os filmes do António Reis e da Margarida Cordeiro são fundamentais. A voz off devo-a à Chantal Akerman, que a usa e se representa a ela própria. Também revi Manoel de Oliveira, Ingmar Bergman… São realizadores sem os quais o filme não poderia ter acontecido.
Como é que a família lidou com isto?
Passou por várias fases. O processo demorou seis anos. Quando lhes falei pela primeira vez gostaram muito da ideia, de estar a fazer um filme sobre a Avó Beatriz. Num segundo momento perguntaram-me como iria fazer um filme sobre alguém que nunca conheci. Num terceiro entraram em choque: “Vais fazer um filme sobre a nossa mãe? Não devias fazer isso!” Como durou tanto tempo, nasceram e morreram pessoas, houve natais, casamentos, batizados e esqueceram-se do que estava a acontecer. Isso deu-me tempo para escrever o guião. E eles só se lembraram que o filme existia quando eu comecei a fazer uma espécie de casting entre os meus primos mais novos. Perceberam então que eu estava a escolher os miúdos para os representarem na infância. Então, a partir daí deixou de ser um filme da Catarina a e passou a ser da família. Passou a haver uma responsabilidade partilhada. No dia 5 de janeiro de 2020, quando lhes mostrei o filme, houve uma reação muito emocional e o meu tio Zé disse: “Se calhar houve coisas que não aconteceram bem assim, mas também podem ter acontecido”. Esta é a verdadeira chave do filme – nunca iremos saber.
Isso só é possível com uma estrutura familiar forte e enraizada…
Uma vezes disseram: “Achamos que as famílias servem para nos consolar, mas elas servem para nos confrontar”. Há uma relação forte e próxima, com problema e conflitos, e onde às vezes há uma sinceridade violenta. Foi essa frontalidade que fez com que o filme fosse possível. Todos lutámos contra os próprios medos. O meu pai pôs muitas coisas em causa, isso revelou-se fundamental para repensar a estrutura do filme. Passou por várias versões até chegar a esta. Questões pertinentes e às vezes um bocado maçadoras. Mas eu sinto que o filme foi importante para desatar pequenos nós familiares.
Dá ideia que o filme foi uma caminhada, quase terapêutica, de autoconhecimento. Como saiu daqui? Com uma sensação de vazio? Com coisas resolvidas?
Este filme está um bocado como a terapia… As coisas nunca ficam verdadeiramente resolvidas, mas há pequenos capítulos que se fecham. Mas continua a inquietar-me o mesmo tema: como nos relacionamos com a morte, não só em relação à minha mãe, mas em geral…
Eu diria que não é um problema de solução fácil…
[Risos] Pois, e com não há solução nós continuamos… Platão dizia que só existe filosofia porque há a morte. Também só existe religião porque há a morte – a ideia de finitude é algo que nos assombra profundamente, por isso tivemos que encontrar forma de falar sobre isso,.
É um filme difícil de explicar em projeto… foi fácil obter financiamento?
Tive dois produtores extraordinários, o Pedro Duarte e a Joana Gusmão, da Primeira Idade. A produtora também estava a começar. Eles foram de uma enorme sensibilidade ao perceber o tempo que precisava. Num país em que temos muito pouco dinheiro, que tenhamos tempo. Estive no Archiedoc, um programa de escrita, com tutoria da Susana Dias. O filme candidatou-se ao apoio a documentários no ICA e ganhou. Foi uma enorme felicidade, há muita gente que tenta anos a fio e não consegue. Depois diz tudo com uma equipa reduzida, persistente, em que cada um desempenha o trabalho de dez. Há uma forma precária de trabalhar em Portugal, mas que a longo prazo é impossível.
O esforço acabou por compensar, porque o filme circulou por festivais importantes e recebeu prémios…
Não estava à espera de nada disto. O filme parte de algo tão pessoal que não sabia como ecoaria nas outras pessoas.
O filme é tão especial que dificilmente poderá fazer algo semelhante… O que vai fazer a seguir?
Dificilmente podemos fugir de nós próprios, daquilo que nos inquieta, daquilo que nos preocupa. Até posso tentar, mas é como se estivesse a fingir e não conseguimos fingir durante muito tempo, O próximo filme também é sobre a morte. E sobre uma família. Só que é mais assumidamente uma ficção. Continua a interessar-me a bagagem que trago de Belas Artes, que também é a minha âncora. As coisas podem revirar-se mas sempre dentro do universo criador.
E em que fase está? Que mais se pode saber?
Está na fase de de escrita, chama-se Pintura Inacabada e trata de temas como a eutanásia e a morte com dignidade. Relaciona-se com os meus filmes anteriores.. Gostava que a minha mãe tivesse tido uma morte sem sofrimento, mas não teve. Sob esse ponto de vista o filme será sempre uma autoficção.