É fácil imaginar monstros através de generalizações. Existe, contudo, a possibilidade de certos pormenores humanizarem a monstruosidade e a hipérbole. Algo tão banal como umas calças caídas podem fazer toda a diferença, pela fragilidade que sugerem, pela intimidade, proximidade e empatia: um monstro tem poder, por vezes transcendente ou invencível, mas um ser humano tem a humanidade garantida pela sua natureza efémera e flébil daquilo que se parte, que se estraga, que acaba.
O seguinte episódio foi relatado por George Orwell, em Looking Back on the Spanish War: “Um homem, que presumivelmente levava uma mensagem a um oficial, saltou da trincheira e correu ao longo do topo do parapeito à vista de todos. Estava meio despido e segurava as calças com as duas mãos enquanto corria. Não disparei. É verdade que sou um péssimo atirador e dificilmente acertaria num homem a correr, distando cem metros do alvo, e também porque estava a pensar em voltar para a nossa trincheira enquanto os fascistas concentravam a sua atenção nos aviões. Porém, não disparei sobretudo por causa do detalhe das calças. Estava ali para matar “fascistas”; mas um homem que está a segurar as calças não é um “fascista”, é obviamente um ser humano, semelhante a qualquer outro, e por isso deixa de fazer sentido disparar sobre ele.”
É importante sublinhar que determinados atos que apelidamos de monstruosidades não são perpetrados por monstros, sendo estes apenas a imagem com que revestimos pessoas normais com o propósito de alhear da natureza humana a crueldade mais grotesca. É importante sublinhar que as monstruosidades, tal como o acto heróico, são acessíveis a todos, do indivíduo mais insignificante ao mais poderoso, conforme as circunstâncias. Não é Deus ou o Diabo que age de forma particularmente bela ou hedionda, é o vizinho, é o barbeiro, é o ignorante, é um familiar, é o intelectual, é um amigo, é o ministro, é o artista, somos nós.
No caso de Orwell, que não disparou graças à proximidade que um pormenor pode trazer, temos a certeza de que são os detalhes que nos fazem humanos, ou melhor, indivíduos. Sem isso somos uma massa indiferenciada de características comuns, e a barbárie serve-se dessa ausência de aspectos diferenciadores para marginalizar, perseguir e exterminar, independentemente da dimensão ética de uma intenção original.
Se sem pormenores não existe identidade nem humanidade (num sentido ético), essas não serão as suas únicas áreas de influência possível, há ainda que apontar, pelo menos, o poder oracular e construtor das minudências. Citando Paul Bloom, Against Empathy: The Case for Rational Compassion: “Estudantes universitários que preenchem um questionário sobre as suas opiniões políticas ao lado de um dispensador de desinfectante para as mãos tornam-se, pelo menos por um instante, mais politicamente conservadores do que aqueles que ficaram perto de uma parede vazia. Aqueles que preenchem uma pesquisa numa sala que cheira mal tornam-se mais intolerantes a outras orientações sexuais. Cidadãos que passam por uma padaria com um agradável cheiro a pão são mais propensos a fazer caridade (…) Pessoas brancas, supostamente igualitárias, estando sob pressão, têm maior probabilidade de confundir uma ferramenta com uma arma depois de verem a fotografia de um negro. Há mais propensão em votar em medidas que financiam a educação quando o local de votação é uma escola.”
E ainda: “Há algumas evidências de que alguém chamado Larry tenha [pela inicial do nome] mais probabilidade de se tornar advogado [lawyer], enquanto alguém chamado Gary tenha mais probabilidade de morar na Geórgia, ou seja, a primeira letra dos nomes exerce influências subtis nas suas preferências.”
Talvez isto explique o facto de Buzz Aldrin, o segundo homem a pisar a Lua, ser filho de uma mulher cujo apelido era Moon. Devemos um cuidado especial a certos detalhes, tal como ao uso de certas palavras (o que torna particularmente pertinente a discussão sobre a sua utilização, mesmo quando o contexto parece ser inócuo e não haver qualquer intenção de magoar o outro). Por isso, um verso, uma formiga que pisamos, uma palavra na fechadura certa, uma flor que apaga a tristeza de uma tarde, uma palavra mais áspera ou um beijo que recusamos podem não parecer ter grande importância imediata e contudo resultarem em atos de dimensões gargantuescas, desejáveis ou pérfidos.
Posto isto, cabe dizer que nem sempre a generalização é condenável, especialmente quando humaniza quem foi desumanizado, quem foi marginalizado por qualquer característica ou acto, e que um detalhe, tal como a generalização, nem sempre é bom, nem sempre é mau: pode redimensionar o ser humano, pode elevá-lo, pode esmagá-lo. Devemos, por isso, uma constante atenção ao mundo, uma atenção poética, que possa atender ao detalhe, à minúcia, à letra com que se inicia cada palavra ou ao estremecimento que antecede cada gesto.
