As Crianças Invisíveis opera o retrato de um conjunto de crianças em regime de internamento numa instituição do Estado, disponíveis para adoção. As crianças designam a instituição de acolhimento, por a Casa, talvez por a não terem. O foco narrativo encontra-se sempre ou nas crianças ou nas funcionárias, principalmente de Conceição, que vive tão intensamente a adoção das crianças como vê lentamente esboroar-se o seu casamento. Ao longo do romance, M. é levada para casa de três famílias, e, por vários problemas, é rejeitado. M. fora abandonado ao pé de um caixote de lixo com dois anos de idade, Conceição diz-lhe que os pais tinham morrido num acidente, M. pouco fala, habituou-se a obedecer, ganha defesas, cria um mundo próprio, ambientara-se na Casa, gosta de lá estar e, ao contrário das restantes crianças, não deseja ser adotado (p. 58), prefere viver com a tutora Conceição, Emília (empregada da cantina), Luísa (psicóloga), o professor António.
Entre várias crianças institucionalizadas, M. simpatiza com S., mais velho, já em idade de não ser escolhido para adoção. Retrata-se o dia-a-dia das crianças sem família e na expetativa dela, os seus sonhos infantis, os pequenos conflitos num ambiente dramático, é muito bem explorado o sentimento de perda, de abandono do mundo, que o título do romance simboliza. Aos 18 anos, são obrigados a sair da Casa. Quando M. sai tem à sua espera S. Só então se sabe os nomes próprio de M. e de S. A esperança, sempre adormecida, renasce: S., já instalada (agora no feminino), guiando um carro vermelho, vem buscar M. para o levar para sua casa.
Da meia-noite às seis prolonga o tema da família. Decorre durante o período da pandemia, com o esforço suplementar de confinamento pedido a todos. António Ribeiro de Andrade, ator, morre vitimado pelo COVID-19. Susana Ribeiro de Andrade, sua mulher, locutora e apresentadora de programas de rádio, recorda a vida com o marido defunto, de como este a libertara de uns pais desinteressantes, de uma relação com um homem mais velho, e lhe possibilitara uma vida nova, ora atormentada pelo vírus. Entre as páginas 55 a 58, mas também disperso por todo o romance, descreve-se o novo mundo dominado pela reação ao vírus, um mundo radicalmente diferente do vivido em criança por Susana, que, leva ao limite as tensões familiares.
Susana trabalha num estúdio de rádio cuja redação era dirigida por Camila Vaz, protótipo do novo jornalista. Susana encontra uma defesa psicanalítica na escrita de séries de números enquanto os outros falam (p. 60). Oferece-se para fazer o programa das “horas mortas” (p. 68), da meia-noite às seis. Aqui trabalha com Rui Vieira, homossexual, sofrendo de “mutismo” desde que fora vítima de um acidente de viação, escreve os noticiários, que Susana lê. Rui tivera uma relação com Miguel Noronha, arquiteto, assessor de um ministro, descendente de uma família do Norte, com uma matriarca à antiga, compreensiva com a homossexualidade do neto. Devido à presença de Miguel Noronha, os pais de Rui Vieira só descobrem a homossexualidade do filho no hospital, e rejeitam o filho, sobretudo o pai, que o preferia ver morto a ser “um paneleirote de merda” (p. 126). Susana e Rui transformam as horas mortas em horas vivas, revolucionando as noites na rádio, Susana, com uma voz triste, mas apelando à participação dos ouvintes, Rui dando relevo, não ao domínio do coronavírus, mas a notícias culturais. A audiência aumenta e Camila Vaz aceita o novo formato das noites da rádio.
Vários tipos de família são descritos em Da meia-noite às seis: a dos pais de Rui Vieira e de Susana Ribeiro de Andrade, famílias tradicionais, cativadas por hábitos e preconceitos, deglutidas por uma rotina que as encerra num pequeno círculo conservador, criticando e desprezando os novos costumes; a família clássica das quintas do Norte, dos solares do Douro, ricas mas vinculadas ao mérito do trabalho, compreensivas para com as liberdades dos mais novos, como a de Miguel Noronha, que, com o pai ausente e uma mãe aérea, pouco ligando ao filho, encontra na avó materna o esteio ético e comportamental por que encara o mundo; a nova família, homossexual, esboçada entre Rui Vieira e Miguel Noronha, frustrada no romance devido a projetos diferentes de vida de cada um dos parceiros; finalmente, a família single, constituída por uma única pessoa, a da viúva Susana Ribeiro de Andrade. O romance abre-se a todas estas famílias, menos à primeira, a tradicional.
Dois bons romances de Patrícia Reis, romances reflexivos e interrogativos, que obrigam o leitor a problematizar as suas certezas, abrindo-se a outras realidades e perspetivas, nestes casos a da adoção e a da homossexualidade.
A família e a pandemia
Desde Morder-te o Coração (2007) e No Silêncio de Deus (2008), com 'reforço' em Contracorpo (2013), Patrícia Reis tem-se singularizado no panorama do romance português contemporâneo por uma espacial atenção ao polémico e complexíssimo tema da família. Nos seus dois últimos romances, que ora recenseamos, As Crianças Invisíveis, de 2019, e Da meia-noite às seis, agora a sair, a família encontra-se igualmente no centro da narração. O primeiro, pela ausência dela, ainda que intensamente desejada; o segundo, pela quebra dos seus laços, seja pela morte de um dos seus elementos por via do COVID-19, seja pela não aceitação das diferenças, levantando muros entre pais e filhos. Da leitura de ambos, o leitor conclui da decadência e esboroamento da figuração clássica desta instituição social e da necessidade de reinventar-se novas formas de família.
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