As flores do mal, de Baudelaire, recentemente editado em Portugal com nova tradução, é, como se sabe, uma obra poética consagrada. E um livro de referência da literatura do Mal que evoca: “O homem não se pode amar completamente se não se condena”, segundo estudiosos.
Thomas Hobbes, em 1651, com o seu Leviatã, legou-nos uma compreensão sólida a respeito da violência tendo como base que o ser humano tem uma “vida solitária, brutal e curta”. Analisou três causas principais da contenda na natureza do homem: “Primeiro: a competição; segundo, a desconfiança; terceiro, a glória. A primeira leva o homem a invadir pelo ganho; a segunda pela segurança; a terceira pela reputação”.
E a sua lógica pode-se resumir num triângulo: em cada ato de violência há três partes interessadas: o agressor, a vítima e o observador. Cada um tem um motivo para a violência: o agressor, predar a vítima; a vítima, retaliar; e o observador tem em vista minimizar os danos da luta dos dois.
A violência entre os combatentes pode ser considerada como guerra e a violência do observador contra os combatentes pode ser chamada de lei.
Leis promulgadas pelas autoridades governamentais que resultam da vontade do povo e têm o monopólio do uso da força. Além disto, as penalidades aos agressores desestimulam o incentivo à agressão. Esta última alternativa é evidentemente melhor do que a guerra, segundo a teoria do Leviatã.
Para Hobbes, os povos primitivos viviam em estado de violenta anarquia até ao surgimento da civilização há cerca de cinco mil anos quando os agricultores sedentários começaram a criar cidades e formaram os primeiros governos. Mas Hobbes nada conhecia sobre a vida diária antes da civilização. Tal como o desconhecimento dessa por parte de Jean-Jacques Rosseau, não o impediu de defender a ideia contrária, ou seja, da docilidade do homem primitivo. Uma teoria romântica e otimista a que acrescenta “que os progressos posteriores nomeadamente sociais seriam responsáveis pela decrepitude da espécie e a violência.”
Enfim, caro leitor, não existe narração inocente. Adiante.
Também William Blake, Sade, Proust (através da moral ligada à transgressão da lei moral) e Kafka são alguns dos escritores consagrados que expuseram nas suas obras a importância do Mal no ser humano. Mas nenhum chegou tão longe como Jean Genet, que deu santidade ao mal sórdido e à transgressão sem limites. (Os conhecidos estudos de Jean-Paul Sartre sobre ele e a sua obra iluminam questões sobre a “liberdade e o mal” e a traição à soberania.) Encontrado e adotado por camponeses pobres, Genet foi preso após roubá-los. Fugiu da prisão de menores, viveu na miséria, da mendicância e de roubos, prostituiu-se e traiu todos os seus companheiros da marginalidade. Manteve-se zelosamente a serviço do mal e na prisão começou a escrever a sua obra. Depois de solto, os seus livros foram editados, nomeadamente Diário de um ladrão, que o tornou uma celebridade.
Um renomado encenador francês estreou uma das suas peças que incita ao assassínio e se tornou um êxito que se estende, até hoje, por teatros do mundo inteiro. Em Portugal, Carlos Avilez já encenou várias peças de Genet e é um profundo conhecedor da sua obra.
(Recordo que vi em São Paulo, nos anos 70, produzida e interpretada por Ruth Escobar, portuguesa e destacada personalidade do teatro brasileiro, a peça “O balcão”, encenada pelo premiado encenador argentino Victor Garcia (1934/1982, tendo dirigido o CITAC, de Coimbra, na segunda metade dos anos 60) em que o teatro teve o seu interior demolido e reconstruído em pirâmide de metal onde atores e público interpretavam e assistiam como fantasmas tristes em completa suspensão e intranquilidade, encenação que teve grande repercussão internacional. Enfim Genet tornou-se um autor polémico e com reconhecimento popular.
O Presidente da República de França em decisão inédita perdoou-lhe as penas salientando que o autor se vangloria em seus livros, portanto confessa os crimes cometidos. E uma de suas vítimas conheceu-o e homenageou-o: “Muito honrado senhor. Faça somente o favor de continuar.” Sartre a este respeito escreveu: “Vocês qualificarão esta história de inverosímil: foi, no entanto, o que aconteceu a Genet.” O famoso filósofo existencialista muito contribuiu para este reconhecimento com os seus textos e livros sobre o escritor, nomeadamente Saint Genet.
A soberania é o poder de se colocar na indiferença para com a morte, acima das leis que asseguram a manutenção da vida. A santidade inspira-se no santo, como sendo aquele que atrai a morte – o sentido da palavra “santo” é “sagrado” e sagrado designa o interdito, o que é violento e talvez perigoso – e a santidade de Genet é consagrada e introduz o Mal e o interdito na existência humana.
Muitas das suas peças foram adaptadas para o cinema, como O balcão, As criadas, interpretadas por Glenda Jackson e Susannah York, Chamas de Verão, realizado por Tony Richardson, com Jeanne Moreau, Veneno, Querelle, de Rainer Fassbinder, entre outros. Por outro lado recorde-se Três pedras para Jean Genet, de Patti Smith, sobre a sua visita à campa do escritor em Marrocos.
A consagração sem reserva do Mal, e a soberania e santidade do Mal que a obra de Genet suscita, salientada nos estudos de Sartre, foi considerada por alguns críticos como um snobismo literário. E estes opositores de Sartre, que constituem um outro lado da moeda, defendem que revelar na liberdade o Mal está em oposição a uma maneira de pensar tão consolidada e sólida que é inaceitável e muito contribui para a corrosão dos laços sociais, que são a raiz da vida em sociedade como ela é e deve permanecer.
Mas a edição completa da sua obra na coleção dos Grandes Escritores Franceses, da Pléiade, com prefácio biográfico e crítico, ao lado de Pascal e Voltaire, entre muitos outros, não deixa margem para dúvidas em relação à qualidade literária da sua obra. Enfim, não existe narração inocente, mas tão pouco a leitura o é.
Não existe narração inocente
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