Há no meu quarto um druida gigante, um espectro igual à morte, imóvel, de olhar escondido no chão. Não sei o que me vem ensinar. Verticalíssimo, está na sombra do cortinado, agora que durmo com o pouco de luz que vem dos candeeiros de rua e o espaço se aquieta com a impressão de aguardar um movimento. Há meses que noto que esta cortina espessa, vermelha intensa, se desenha na penumbra para ser uma figura espectral de panejamentos pendentes, muito silente e paciente. Em outros tempos, teria medo por ser tão perfeita imitação da morte que vemos nos filmes, a faltar-lhe a foice para ceifar almas incautas ou maduras. Agora, tão perfeita morte diante de mim, não me assusta. Solicita-me o curioso espanto. Julgo que espero falar-me. Estou à espera que se explique.
Talvez me haja habituado demasiado a este pequeno quarto e tenha apaziguado o destino com o estar aqui parado, afinal, tudo quanto me motivava era por me servir para os livros e todos os livros me servem aqui. O tamanho do quarto abre-se ao infinito da Literatura. A vastidão, sei bem, sempre me acompanhou. Este cárcere é mais a posse dessa vastidão do que um modo de estar impedido.
O bocado de mim que se lamenta de não sair, há tanto sem viagem e sem multidão, talvez o veja agora como espúrio, um bastardo do meu caráter, diabo parasitário que atenta meu perfil tímido e solitário. Cresci na iminência de ser monge, estar em fuga pelo silêncio, habitar a montanha, saber das árvores, das migrações dos pássaros e de todas as transumâncias mais do que da especulação dos dias, essa pressa de consumo e satisfação pueril, imparável. Convenci-me cedo de que me bastariam um amuleto e livros. O José Régio dizia que dez livros seriam suficientes para se ter completa noção do esplendor da Literatura universal. Dez livros separam o lúcido do bruto. Como se caminhasse para uma cabana, eu listei vezes sem conta dez livros que levaria para um exílio. Com eles, afinal, estaria como inteiro, de humanidade inteira contida nessas porções perfeitas, enfeitiçadas, de texto.
Quando agora abro os olhos e me dou conta da forma da morte no cortinado do meu quarto, pondero se alguma coisa se aprende com as convenções atiradas aos olhos, o que nos educa para crermos que algo eventualmente inexistente se mostra assim, desta maneira, muito perto de abrir a boca. O que tenho a aprender com esta visão continuada? Com o seu silêncio também?
Nem sequer procuro mudar o cortinado, interferir em suas dobras para que pareça outra coisa imersa na penumbra. Assumo que gosto que seja assim. Se o mistério mais caro é o de haver depois, porque haveria eu de rejeitar a possibilidade de o auscultar?
Convenci-me de que em solidão só nos atarefamos com morrer. Não havendo mais ninguém, o que façamos é sem sentido. Importará para os vindouros, se for de perdurar e oferecer proveito, mas arrisca o sentido da nossa vida. A solidão é uma corrupção do propósito humano. Estamos todos desafiados com o cárcere da pandemia. Apartados, avidamente ocupados com sucedâneos de gente, através dos filmes e de tanta imagem ou som, iguais aos autómatos, somos plurais pela graça dos ecrãs, pela graça de dispositivos elétricos que nos instalam numa cidadania cada vez mais virtual. Uma cidadania sem corpo.
Estamos sós, a menos que inventemos companhia na suspeição das coisas. Espiamos as coisas como aguardando que se confessem. É o que aguardo do cortinado vermelho, espesso, cabisbaixo, que me parece culpado. Certamente culpado de seu silêncio, de sua incapacidade de dizer, por ser morto, oposto ao que vive. Talvez não oposto. Paralelo. É paralelo ao que vive. Mas, se suspeito, é porque está tão perto. Um druida tão perto de ser capaz de ensinar o vai ao lado da vida, o que vai ao lado da morte. Tão essencial para entendermos que suspensão é esta, tão ao centro dos dois tempos unidos.
A ideia da morte

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