1 Três observações prévias, antes de passar adiante. Primeira: a figuração narrativa de animais assenta numa tradição que, na cultura ocidental, cristalizou num género conhecido: a fábula. Provinda de origens e de autores muito antigos (p. ex., Esopo, no séc. VI a.C., e Fedro, no séc. I d.C.), a fábula envolve personagens, em princípio, pouco complexas, muitas vezes animais com feição e comportamentos humanos. Trata-se, além disso, de um tipo de relato com considerável força pragmática, nesse aspeto semelhante à parábola e ao apólogo, exercendo uma ação potencialmente transformadora, educativa ou moralizadora.
Segunda observação: no imaginário daquilo a que chamo (de novo) cultura ocidental, a propensão moralizadora é evidente nos bestiários, replicando, nesse aspeto, modelos de proveniência oriental, de representação dos animais em textos desta natureza. Os bestiários medievais floresceram sobretudo nos séculos XIII e XIV, em contexto monástico e ligados à afirmação de uma mensagem religiosa, em que o animal (real ou imaginário) e as suas ações veiculam sentidos transcendentes e alegóricos. Indo além do tempo medieval, a lógica representacional do bestiário prolonga-se muito para além desse tempo. Por exemplo: no Manual de Zoologia Fantástica (1957), de Jorge Luis Borges (com Margarita Guerrero), depois chamado El Libro de los Seres Imaginarios (1967).
Terceira: nos últimos anos, foi-se desenhando um campo de trabalho designado como estudos de animais (animal studies), um domínio interdisciplinar, com projeção nas Humanidades, pelas facetas ética, literária e filosófica que comporta. A narrativa assume aí uma presença relevante, sendo a personagem-animal analisada em função da sua interação com a condição humana, num eixo de reflexão em que a díade animalidade-humanidade ocupa um lugar fulcral. Acontece assim na narrativa literária, mas também, por exemplo, no relato cinematográfico e até nos jogos eletrónicos com componente narrativa.
2 Pode um gato ser personagem num grande romance onde não faltam figuras humanas marcantes? Pode, evidentemente. Logo no início d’Os Maias, quando se procede à figuração de Afonso da Maia, não estão em causa apenas os seus atributos lembrando um “varão esforçado das idades heroicas” (Os Maias, ed. Imprensa Nacional, 2017, p. 67). Completa-se essa imagem com “um pesado e enorme angorá, branco com malhas louras, [que] era agora (…) o fiel companheiro de Afonso.” O gato tem um nome que vai mudando: “Tinha nascido em Santa Olávia, e recebera então o nome de Bonifácio: depois, ao chegar à idade do amor e da caça, fora‑lhe dado o apelido mais cavalheiresco de D. Bonifácio de Calatrava: agora, dorminhoco e obeso, entrara definitivamente no remanso das dignidades eclesiásticas, e era o Reverendo Bonifácio…” (p. 68).
Regularmente, o gato aparece nas páginas d’Os Maias como membro da família e, mais do que isso, como signo-animal da temporalidade que estrutura o romance. É esse o sentido – o da passagem do tempo – das mudanças de nome, acompanhando o processo que vai da juventude à velhice. O mesmo processo, afinal, vivido por Afonso da Maia e por outras figuras do romance, com destaque para Tomás de Alencar. Por fim, é o reverendo Bonifácio que chora a morte do patriarca: à porta do quarto vazio que abrigara o dono, “recomeçou a miar, num lamento agudo, saudoso como o duma dor humana, chorando o dono perdido que o acariciava no colo e que não tornara a aparecer” (p. 663).
3Um gato que em si absorve as emoções dos homens é tão personagem como eles e assimila uma condição quase humana. De resto, este é o animal em que comparecem, em diferentes repertórios simbólicos, significados plurais e contraditórios: a doçura sensual e a agilidade, o engenho e a astúcia, a frieza felina e a má fortuna – a do gato negro, pois claro. Por tudo isto, o gato não iguala a valoração positiva própria da simbologia do cão. Veja-se, por exemplo, como um gato comodista e calculista (o Morgado, de Dona Sância), contrasta, nas páginas dos Bichos, de Miguel Torga, com o cão Nero.
Sendo reconhecidamente um admirável contista, Miguel Torga construiu em Bichos, como ele mesmo disse, uma “pequena Arca de Noé (…) onde a nossa condição se encontrou” (Bichos, em Contos, ed. Dom Quixote, pp. 97-98). Em Nero encontramos o oposto de Morgado, ou seja, a dignidade com que se vive a vida e a aceitação da inevitabilidade da morte. Tecnicamente, a história do cão de caça torguiano é, como conto, perfeita: exibindo a sóbria concentração de meios que o género requer, a história de Nero é relatada em regime autobiográfico pelo cão que evoca a sua vida, no momento em que está prestes a abandoná-la.
Nada de novo na história da literatura. Neste caso, contudo, é pelo ponto de vista de um animal, metonimicamente associado aos humanos com quem convive, que se reconstrói um trajeto atravessado por sentidos e por valores que dominam uma existência afinal semelhante, nos seus desejos, nos seus impulsos e nos seus medos, à dos humanos. É muito disso que o cão moribundo rememora, entre a lucidez e a amargura: a excitação do crescimento e da aprendizagem, a gestão dos afetos, com as suas cumplicidades e as suas desilusões, as tensões entre o coletivo e o individual, a disciplina e a rebeldia, e ainda o desejo de deixar uma marca de continuidade que resista à morte. Tudo isso sobrevém no momento culminante mas sem retorno que o contista fixou no parágrafo final: “E à noite, quando o luar dava em cheio na telha vã da casa, e os montes de S. Domingos, lá longe, pareciam já ter saudade das suas patas seguras e delicadas, quando o cheiro da última perdiz se esvaiu dentro de si, quando o galo cantou a anunciar a manhã que vinha perto, quando a imagem do filho se lhe varreu do juízo, fechou duma vez os olhos e morreu” (p. 107).
4Apresentam características bem diferentes destas os cães que povoam alguma da ficção de José Saramago. Vários cães, com vários mas também, nalguns casos, repetidos nomes. Destaco aqui o Cão das Lágrimas, de Ensaio sobre a Cegueira, reaparecido em Ensaio sobre a Lucidez, sempre como figura “em que se prolonga e modula a relevância que na ficção saramaguiana é atribuída aos cães, como animais em direta relação com os humanos, com os valores que eles representam e eventualmente degradam” (Daniela Maduro, “Cão das Lágrimas”, em Dicionário de Personagens da Ficção Portuguesa; http://dp.uc.pt/conteudos/entradas-do-dicionario/item/756-cao-das-lagrimas). Integrado no grupo de cegos que vagueia pela cidade devastada, o Cão das Lágrimas conserva, com a Mulher do Médico (ver http://dp.uc.pt/conteudos/entradas-do-dicionario/item/757-mulher-do-medico), a lucidez da visão, como resíduo da razão. Justamente: aquela razão que falta à gente degradada pela cegueira que, como metáfora e como alegoria, foi imposta aos homens e às mulheres no cenário distópico e cruel de Ensaio sobre a Cegueira. Não é só nesse cenário que o Cão das Lágrimas se movimenta, ele desloca-se, num gesto transficcional, para Ensaio sobre a Lucidez, mas não sem anunciar a sua presença, logo na epígrafe deste segundo romance: “Uivemos, disse o cão”.
5 Por fim, José Saramago incorpora na sua ficção um elefante, prologando, até ao final da sua produção literária, a figuração de personagens-animais. Em A Viagem do Elefante, lemos dois motivos fortes da obra saramaguiana: a viagem e a História. Como D. João V ou como D. Afonso Henriques, a figura histórica desloca-se do seu tempo para o nosso e inspira a reescrita, em clave ficcional, da viagem, de Lisboa até Viena, de um elefante oferecido por D. João III ao arquiduque Maximiliano. De novo, então, a personagem-animal está em movimento, duplo movimento, acrescente-se, do passado para o presente e de Portugal para a Áustria, sem esquecer a mudança do nome (para Solimão). Com o elefante vai o cornaca, mas, para que não restem dúvidas, o narrador avisa: “O cornaca subhro, ou branco, prepara-se para ser a segunda ou terceira figura desta história, sendo a primeira, por natural primazia e obrigado protagonismo, o elefante salomão” (ed. Caminho, 2008, p. 38). A isto podemos juntar, de forma sumária, outros sentidos: a dimensão transformadora da viagem, as diferenças e as semelhanças entre os homens, o conhecimento do mundo dos outros, a verificação ficcional de incidentes históricos, etc.
A par de todos (ou até acima de todos) fica a valorização do protagonismo do animal. Parecendo ter saído de um imaginário “Livro dos Itinerários”, é esse animal exótico que justifica a epígrafe de Ensaio sobre a Lucidez: “Sempre chegamos onde nos esperam”. J