JOÃO BARRENTO

O Homem sem Qualidades, Robert Musil
“Um dos maiores exemplos de uma nova forma do romance no século XX (…) Musil é, com este romance, um escritor inactual, mas actuante e incómodo, porque nos vem lembrar que estamos ainda à espera da entrada num “outro estado” (de coisas e da psique humana) a que não se chegou. Porque esse estado seria um estado de espírito que é um estado do espírito, no sentido literal do termo: de inteligência e afecto, pensamento e alma, um estado de des-possessão de todas as “qualidades” que fizeram e fazem o mundo e a História, que são as de políticos sem visão, profetas nebulosos, manipuladores de toda a ordem – nos alvores da Primeira Grande Guerra, o tempo do romance, tal como depois. Não esquecer o que o autor sobre ele deixou dito: “Este livro tem uma paixão, um tanto deslocada no âmbito da literatura: a da justeza e da exactidão”.
CLARA ROWLAND

Bomarzo, Manuel Mujica Lainez
“Autobiografia ficcional do duque Pier Francesco Orsini, criador, na segunda metade do séc. XVI, de uma das mais estranhas experiências arquitectónicas da época, o famoso parque dos monstros de Bomarzo. Dificilmente o livro, compacto e monolítico nos seus onze amplos capítulos, aceitaria outro título, pois é a leitura do jardim como autobiografia e síntese impossível de um tempo (Carlos V, Lepanto, Benvenuto Cellini, Lorenzaccio, Paracelso, Cervantes) que o livro constrói no contraste entre a rigidez referencial da pedra das estátuas de Bomarzo e a expansão efabulatória de uma alegoria que se entrega, com todo o tempo do mundo, ao jogo do tempo. A conversão dessas estátuas mudas em prodigiosos “gigantes do tempo”, na expressão de Proust, é uma demonstração fascinante do poder de dilatação da ficção narrativa.”
CRISTINA ROBALO-CORDEIRO

Em busca do Tempo Perdido, Marcel Proust
“Vasta reflexão romanesca sobre o vivido, com toda a proliferação de episódios e de personagens de uma nova Comédie Humaine, restituída por uma consciência hipermnésica, La Recherche pode, pelos benefícios psíquicos que prodigaliza, equivaler a um exercício espiritual de meditação para quem a longa postura imóvel requerida pelo Za-Zen desencoraja. É pois a uma espécie de salvação imanente que conduz, através da morte do mundo histórico da Belle Epoque e da redução ascética do eu mundano, este paciente desvendamento da verdade dos seres e do Ser (…) Proust é um desses muito raros autores – para não dizer o único – que temos a impressão de ter sempre já lido e que só nos resta com efeito relê-lo. Mas a frequentação assídua deste romance monumental apresenta uma outra vantagem, menos conhecida talvez e singularmente apreciável nas circunstâncias morosas que nos rodeiam. Sabe fazer-nos rir!”
MÁRIO AVELAR

Moby Dick, Herman Melville
“Moby-Dick é uma obra insólita por duas razões, pela sua extensão e pela convocação dos mais variados solos que dão corpo à tradição cultural ocidental, nas suas matrizes clássicas e judaico-cristãs. Ora revisitando a epopeia – a viagem de Ismael; ora convocando a tragédia – a hubris de Acab; ora através das narrativas bíblicas onde a leviatã é mencionado ou sugerido – Jonas, Jó; ora fornecendo um subtexto onomástico – Ismael, Acab, Elias, Bildad, Raquel, Peleg, et al; ora evocando uma memória histórica – das narrativas de marinheiros à epopeia marítima portuguesa; ora expondo as sinuosas veredas da mente – os solilóquios de Acab e os devaneios de Ismael; ora dialogando com a arte; ora fazendo incursões em margens denegadas – o gnosticismo; ora meditando sobre a aristocracia natural; ora revelando as tensões no encontro com a alteridade, não há um instante no regresso à leitura desta obra que não me leve a desvendar fragmentos que, no silêncio, aguardam a sua descoberta.”
ISABEL PIRES DE LIMA

O Idiota, Fiódor Dostoiévski
“Trata-se de um romance que dá com um realismo cru, que em certos momentos se torna cruel, um retrato impiedoso da sociedade russa da época. Ao mesmo tempo é um romance, de uma fortíssima densidade psicológica no que à criação do mundo íntimo tendencialmente obsessivo das personagens diz respeito, dando a ver a diversidade de pontos de vista de que a vida é feita, através de uma polifonia narrativa que por vezes desnorteia o leitor. É, pois, um romance que antecipa práticas a que o romance pós-moderno hoje nos habituou e até banalizou (…) A leitura de O Idiota conduz-nos a perguntas vitais, hoje e sempre: Quem é mais idiota, o protagonista ou os múltiplos interlocutores com os quais interage? Nós, que aceitamos o mundo que nos é dado ou o idiota que o rejeita ou que não se adapta a ele? Não estaremos a precisar de nos tornarmos mais atento à diversidade que mundo e vida oferece a quem quiser ver? Não estaremos a precisar de ser mais idiotas?”
J. A. CARDOSO BERNARDES

História de Menina e Moça, Bernardim Ribeiro
“A novela sentimental (género a que pertence a obra) caracteriza-se pela supremacia do discurso em relação à história contada. Como se cada peripécia servisse apenas para ilustrar um princípio ou uma teoria de vida. Ainda assim, há episódios que não se esquecem. É o caso do cavaleiro que, de noite, se aproxima de uma janela exterior, de onde pode ver a amada. O encontro é breve e clandestino. Quando a mulher se retira, porém, o jovem enamorado não consegue abandonar o lugar em que se encontra, acabando por deixar-se adormecer e ferindo-se na queda que se segue. O livro de Bernardim Ribeiro cumpre o requisito maior da literatura de qualquer tempo: não se deixa ler com pressa e desatenção. As dificuldades que possa sentir são largamente compensadas por uma garantia preciosa: a de estar perante um livro diferente, que não deixa ninguém tranquilo.”
ANTÓNIO SOUSA RIBEIRO

A Montanha Mágica, Thomas Mann
“O grande romance de Thomas Mann parece mais atual do que nunca, com a diferença de que o confinamento não se resume a um sanatório em Davos, mas se disseminou globalmente e se instalou, não sabemos por quanto tempo, como parte de uma problemática normalidade. Na sua longa e atribulada gestação, o romance dá corpo ao projeto desmedidamente ambicioso de conferir expressão a todo o universo das tensões políticas, sociais, ideológicas, culturais do contexto imediatamente anterior à I Guerra Mundial. Não há síntese possível para esse universo conflituoso nem existe nenhuma resposta unívoca ou definitiva quanto à possibilidade de afirmação de um princípio de humanidade em contextos que lhe são tão pouco propícios. O universo ficcional põe sempre em confronto o nosso mundo, ou o que julgamos ser o nosso mundo, com outros mundos e outras possibilidades que, muitas vezes, não adivinhávamos.”
JORGE VAZ DE CARVALHO

Porquê ler os Clássicos?, Jorge Vaz de Carvalho
“Escolher uma obra-mestra da literatura é optar pelo que deixou longa prova de autoridade, ao nível da profundidade do pensamento, energia inventiva e excelência da linguagem. Quem não se contenta em passear na praia à babugem, mas se engolfa com deleite em desafios de mar-alto, sabe que a leitura apura a inteligência e a sensibilidade, estimula a imaginação e a criatividade, aprofunda a visão do mundo, a reflexão crítica e o saber. Para o leitor inteligente, sensível e culto, toda a circunstância é proveitosa e nenhum termo bastante. Um clássico nunca é tempo perdido.”