Antes de mais nada quero agradecer à Estoril Sol, por ter escolhido como objeto deste Prémio Vasco Graça Moura a Cidadania Cultural. Agradecer ao júri que me distinguiu, na pessoa de Guilherme d’Oliveira Martins, e que me colocou num patamar que não sei se mereço, mas que me oferece como antecessores pessoas como o prof. Eduardo Lourenço, com tudo o que deu à cultura portuguesa, e José Carlos de Vasconcelos, autor de um trabalho sem nome que consiste em durante dezenas de anos pôr nas mãos dos portugueses um grande e acreditado jornal de cultura .
Este ano foi para mim um ano de prémios e de reconhecimentos. Agradeço ao meu país ter-me permitido, ainda que quase sempre ao arrepio das instituições do Estado, ter feito a carreira que fiz. Em que a par do trabalho teatral, os sucessivos juris têm vindo a realçar a componente da Cidadania. Na verdade há já bastantes anos a Companhia de Teatro A Barraca, a cuja direcção tenho dedicado a maior e melhor parte da minha vida, se auto designou Teatro Cidadão, seguindo a inspiração de Jean Vilar. A Companhia foi considerada pelo Estado Instituição de Utilidade Pública – grande honra que conservamos entusiasticamente.
E agora um prémio de Cidadania Cultural. Não sei se as pessoas têm a noção do que significa para nós esta designação. Teatro cidadão . E perguntarão: mas não é cidadão todo o Teatro ? A cidade. A polis . E eu responderei do nosso ponto de vista: não. Nem todo o teatro é cidadão. A que nos obriga então este título que escolhemos para nós e que de alguma maneira estas distinções confirmam? Quais são para nós os contornos de um Teatro Cidadão em Portugal?
Teatro Cidadão é em primeiro lugar um Teatro que, em todas as áreas da sua expressão, dos conteúdos às formas, que em arte são por si só conteúdo, à ética e ao comportamento, se bata pela liberdade. Liberdade mas não só a própria. A de todos.
Um Teatro que se bata por abrir perspetivas, que se preocupe em como serão os nossos jovens daqui a dez anos, quando lhes for dado fazer alguma coisa pelo seu país e pelo mundo. E não apenas os jovens que têm livros em casa e drs. no adn. Gente que venha não importa de onde e queira saber. Que tenha nascido e ainda resida em áreas que os programadores portugueses não consideram de excelência cultural. Gente que esteja à partida condenada por isso. Mas que seja sensível. E que não se resigne.
Um Teatro que dê combate ao elitismo, sem tréguas. Que faça escola, que ensine, que dê a ler, que dê a ver. Um Teatro que não deixe para traz os milhões de portugueses que também pagam os impostos donde vêm as verbas para a cultura, mas que moram longe.
Um Teatro que assuma a responsabilidade de valorizar a sua língua. E os seus autores. E que sem nacionalismos crie relações e respeite os países e os espaços onde esta língua esteja viva e queira ter futuro. Este amor pela nossa língua já trouxe à Barraca distinções como ser Patrona do Festival de Teatro em Maputo e o prémio de Personalidade da Lusofonia de 2010, no Brasil.
Um Teatro que a exemplo de Lorca, que nos deu o nome, seja capaz de abdicar de montagens luxuosas para fazer uma arte ágil, leve, que como ele próprio dizia se monta e se desmonta para seguir caminho
Um Teatro que faça render culturalmente cada montagem mostrando-a ao maior número de pessoas e porque elas são caras, as montagens, não as tire de cena ao fim de meia dúzia de dias em cartaz. O Teatro não pode ser mais um produtor de lixo que se deita fora assim que se estreou.
E um Teatro Cidadão esforça-se por ter uma casa própria, onde se sinta bem, um espaço onde desenvolva o seu gosto e as suas cumplicidades. Onde possa receber os seu pares. Arriscar. Onde ponha à prova a sua solidariedade. Onde possa vender os seus bilhetes ou dá-los a quem precise deles.
O Teatro Cidadão luta por conservar a sua casa, porque sabe que para um criador a independência e a liberdade não se dão bem na casa do principe (que nos nossos séculos já não se chama assim). É um Teatro que sabe que quanto mais se aprofundam as relações entre os artistas mais profunda é a arte que se cria em conjunto. Um Teatro que combate a precariedade, defendendo um projeto de companhia estável, sólida, combatendo contra o sobressalto do desemprego .
Mas a manutenção de uma Companhia estável é mais cara do que muitas cenografias luxuosas. Só que em Arte não se podem separar os universos. Digo Gestão – Digo Estética-Digo Ética .
O Teatro Cidadão é caro. Sim. Precisa de uma camioneta. Precisa de braços para poder trabalhar. Por isso o Teatro cidadão não pára de fazer sessões para manter a Companhia. Aceita todos os convites, mesmo em más condições, para manter a Companhia.
Por isso o ator cidadão trabalha horas sem fim como voluntário, para manter a Companhia. Porque a Companhia é o Corpo dos Atores que dá Corpo às peças, o Corpo dos Técnicos que dá luz às peças. A Companhia é a voz que atende o Público, sem o qual não vivemos.
Pouco tempo depois de ter começado a representar sentia que a nossa arte de ator era muito limitada. Atores… Falta-nos voar, arder, cegar o público por um instante, desaparecer e deixar em cena só o nosso grito.
Hoje, mais de 50 anos depois, eu penso ainda, mas por outras razões, que o Teatro é limitado, que por muito que o teatro faça não chega. É quase nada neste apocalipse em que nos vemos. O nosso tempo é uma espécie de fim do mundo para quem tenha lido João de Patmos e tenha levado o texto biblico à letra.
Estamos a aprender tudo outra vez. E quem nos ensina alguma coisa são os mais novos que nos chamam e nos levam pela mão até à nossa responsabilidade como cidadãos do mundo. Para Malala vai o meu primeiro obrigada, porque ela quis aprender e estendeu ao mundo todo o seu desejo e empenho; e para Gretta Thunberg, que aponta o dedo acusador ao único animal que deu cabo do mundo onde foi posto. Outro obrigada para o Miguel Duarte, que nos acena e pede ajuda e sabe que salvar vidas não é crime – um grande abraço de solidariedade. Ele não se esqueceu dos outros. Nós não podemos esquecer-nos dele. E outro obrigada ainda para a Policia Marítima portuguesa, que já arrancou 14 mil vidas à morte no Mediterrâneo. Obrigada por terem acendido em todos os que os ouviram a rejeição da indiferença.
E a rejeição activa da indiferença é o primeiro grau da cidadania.
Maria do Céu Guerra: O Teatro Cidadão
Ao receber o Prémio Vasco Graça Moura de Cidadania Cultural, relativo a 2018,
que lhe foi entregue no passado dia 20 de novembro (juntamente com os Prémios Fernando Namora, a Carlos Vale Ferraz, e Agustina Bessa-Luís, a Judite Canha Fernandes) a excecional atriz e encenadora, mulher de cultura e ação, leu o texto
que pela sua qualidade e por tudo que representa aqui se publica na íntegra
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