Às vezes gosta de imaginar como seria a vida do seu pai, Jorge de Sena, e dos muitos amigos, escritores e artístas com quem se correspondeu ao longo da vida, neste mundo atual de partilhas em tempo real, de vários meios de comunicação, de redes sociais e twittes a torto e a direito. Para um investigador, seria certamente uma grande dor de cabeça. Ou, se calhar, uma perda enorme. Isabel de Sena (IS), filha mais velha do escritor, poeta e ensaísta, já identificou várias. Com a impossibilidade da sua mãe, Mécia de Sena, hoje com 99 anos e que durante 35 anos cuidou e divulgou o espólio do autor de Fidelidade, é agora missão sua decidir o que pode ser publicado, em que meios e para que público – além do que ela própria prepara para o efeito. Estando neste momento a trabalhar na correspondência ainda inédita, já nela encontrou diversas vezes a anotação: respondi por telefone. “Por vezes há saltos nos diálogos, o que é uma pena”. Por sorte, Jorge de Sena gostava de falar ao telefone, mas sabia que, em tempos de ditadura e de Estado Novo, não era o meio mais seguro de comunicar. As cartas também não o eram, mas lá se encontrava o correio adequado, o esquema propício e a morada certa.
Nesta missão de divulgar a obra do seu pai, IS quer privilegiar o acesso às obras mais importantes, e também às que mais frequentemente lhe solicitam, quer em Portugal, quer no Brasil e nos Estados Unidos da América, países que completam a geografia familiar e intelectual do grande escritor. Em relação à correspondência, procurará avaliar a pertinência e a oportunidade da sua publicação, de forma a oferecer “leituras novas”, em vez de “saturar”. Tem sido uma viagem intensa, pois ao ler estas cartas recupera figuras que povoaram sua juventude e adolescência. “Eram as pessoas que apareciam lá em casa e que fizeram coisas extraordinárias”, afirma, lembrando o olhar da criança que foi. Hoje, com a sabedoria de 70 anos recém cumpridos e de um longo percurso intelectual próprio, garante que este trabalho é “um enorme privilégio, um grande gosto e divertimento constante”.
Jornal de Letras: O que gostava que ficasse das comemorações do centenário de Jorge de Sena?
Isabel de Sena: A leitura da sua obra, que novas gerações cheguem ao que o meu pai escreveu em todas as suas dimensões: de poeta, romancista, também de crítico ou erudito. Não chega incluir dois ou três poemas nos programas escolares ou em antologias, por sinal sempre os mesmos. Recentemente, uma turma do Liceu Camões fez uma curta-metragem com a leitura do poema Ascensão. Foi maravilhoso. Projetos como estes deviam ser mais estimulados. Não estou a dizer que não se façam colóquios, que são muito importantes, até porque trazem sempre um testemunho mais antigo e direto. Mas voltar à leitura da obra pelos mais novos é fundamental, para qualquer escritor.
No caso de Jorge de Sena, destaca-se também a sua atualidade.
É verdade. Como se o tempo se tivesse encarregado de mostrar a sua atualidade e pertinência. Nas iniciativas a que tenho assistido tem-se falado até em “presciência”. A expressão não é minha, mas acho-a muito interessante. De repente, um escritor é considerado novamente ou intensamente atual. Será isso a definição de um grande autor? No caso do meu pai acho que havia muita intuição, mas sobretudo uma atenção constante ao mundo para lá da superfície das coisas.
Tem havido comemorações do centenário também no Brasil e nos EUA. É uma prova da dimensão ‘internacional’ da sua obra?
Sim. Corresponde não só à sua biografia, mas também à pessoa que era. Ele nunca se restringiu apenas à literatura e à realidade portuguesa. Tentou sempre abarcar outros mundos. Ter vivido no Brasil e nos Estados Unidos ajudou muito, claro, mas havia já muita bagagem quando saiu de Portugal e sobretudo uma grande valorização da participação política. É uma dimensão muito importante no seu perfil cívico, literário e académico.
Falar do Brasil e dos EUA é abordar as tensões entre proximidade e distância, estar em Portugal estando fora. Como é que ele lidava com essa tensão?
O meu pai sofreu muito com o exílio e com a sensação de não ser reconhecido, mesmo depois de uma longa carreira académica. Era um sentimento muito forte. Mas quando, a partir de 1968, com a abertura do regime, veio a Portugal também sentiu um acolhimento grande, que o tocou. Foram emoções contraditórias, a que, no final da vida, se juntou a doença, que o debilitou muito. A verdade é que o exílio proporcionou-lhe oportunidades que nunca teria em Portugal, como fazer um doutoramento, ter um percurso académico, afirmar-se como erudito, que é muito diferente de ser crítico literário.
Em que sentido?
No que Umberto Eco dá ao intelectual público, aquela pessoa que comunica com um público muito lato e não só com o especializado. No Brasil, ainda conseguiu assumir essa faceta, colaborando com diversas publicações. Ironicamente, nos EUA entra num sistema que lhe dá condições excecionais – excelentes bibliotecas, bolsas, dinheiro para viagens – mas que tende para a especialização. Talvez isso explique uma certa solidão. Não lhe faltaram amigos que o admiravam, compreendiam e apreciavam, mas havia sempre a sensação de português perdido no mundo e que nem sempre encontrava eco para as suas preocupações, gostos e paixões.
O discurso do 10 de Junho de 1977 será uma imagem do intelectual público que poderia ter sido em Portugal?
Talvez. É quase uma espécie de testamento espiritual, numa altura em que já estava muito debilitado. Foi um esforço muito grande.
Está neste momento encarregue do espólio do seu pai. Que objetivos, planos e prioridades definiu?
Comecei a ocupar-me da obra a partir do momento em que infelizmente a minha mãe já não o podia fazer. Na altura, estava em curso a publicação da correspondência com Eugénio de Andrade, o primeiro projeto de que me ocupei, com a minha irmã Joana. Voltámos aos originais, corrigimos gralhas que encontrámos numa ou outra passagem, respeitámos os cortes da minha mãe e acrescentámos mais um ou outro. Saiu na Guerra e Paz. Começar a trabalhar na correspondência acabou por ser um acaso. Avançou-se depois para uma reedição d’O Físico Prodigioso, num formato especial.
Haverá novidades também em relação às obras principais?
Tem de haver. Esta, d’O Físico Prodigioso, foi um caso excepcional, não é uma edição acessível a toda a gente, por causa do trabalho gráfico, das ilustrações e do preço. Mas estamos a tentar fazer chegar os textos a novos leitores, inclusive nas plataformas digitais. Constantemente me transmitem desejos de leitura. Mas na correspondência, que é a área que poderá ter mais novidades, é muito interessante ver as ligações que se estabelecem com o resto da obra. As cartas servem-lhe para elaborar certas ideias que depois dão origem a poemas, narrativas, ensaios ou críticas. É um jogo de ida e volta, estimulado pelas muitas pessoas com quem o meu pai se correspondeu e com os vários graus de relacionamento e intimidade.
Na correspondência, o que decidiu fazer?
Avaliei, primeiro, o que já estava publicado pela minha mãe e em função disso tentei perceber o que podia ter interesse ou ser importante editar. Muitas vezes, é uma questão de oportunidade. Que opções tenho para fazer chegar estes materiais inéditos ao público e a que público? O que se apresentou de imediato foi a correspondência com João Sarmento Pimentel, que sairá ainda na Guerra & Paz, com o indispensável apoio da Fundação Calouste Gulbenkian. É particularmente interessante.
Porquê?
É um fulcro na obra do meu pai, uma imagem da sua (e nossa, pois todos nós, eu e os meus irmãos, acabámos por ir com ele) passagem pelo mundo. O João Sarmento Pimentel é aquela figura maravilhosa que vem do 5 de Outubro, que passa por África, que participa numa rebelião fracassada contra a instauração do Estado Novo, e que mais tarde se exila no Brasil. É no seu grupo, de que fazem parte ainda Fernando Lemos, Adolfo Casais Monteiro e outros escritores e artistas, que o meu pai se vai integrar. Todos se encontram à volta do jornal Portugal Democrático. Uma época em que o meu pai começa a publicar e a desenvolver o seu trabalho académico. O Sarmento Pimentel participará ativamente nesse processo, entusiasmando-o. No sentido inverso, o meu pai incentiva muito a escrita das memórias que virá a publicar (Memórias do Capitão). A confiança é mútua. Juntavam-se todos em grandes almoços, devia ser muito bonito de se ver… Comoventemente, essa relação continua depois de nos mudarmos para os Estados Unidos. O Sarmento Pimentel reúne-se com as mesmas pessoas e lê as cartas do meu pai. E na resposta diz quem esteve presente, o que se comentou. É um diálogo muito vivo.
E extenso?
Sim, mas não sei ainda bem avaliar. Estou a anotá-lo, porque há referências a muitas pessoas, da literatura e da política, que hoje muitos leitores podem desconhecer e que em alguns casos são difíceis de identificar pelas expressões que usam entre eles, às vezes na brincadeira. O Fradalhão, por exemplo, é um dos termos que Pimentel usava para se referir a Salazar.
Além dessa correspondência, que outras pensa publicar?
Há vários projetos, inclusive um que está pensado para a próxima Feira do Livro de Lisboa, mas sobre o qual não gostava de adiantar nada. Será muito diferente. Mas como disse, dependerá sempre da oportunidade e até das editoras, que também não atravessam um momento fácil. Não estamos a falar de romances, mas de livros com um público mais reduzido. Na correspondência também é preciso avaliar se a sua publicação oferece novidade, acrescenta ao que já se sabe.
Teme uma certa saturação? Já há vários volumes de correspondência publicados.
Como de nenhum outro escritor português. Mais uma vez, é preciso ver caso a caso. Inevitavelmente, as pessoas estão a escrever sobre uma mesma realidade. Até que ponto pode haver efetivamente uma nova leitura dos acontecimentos? A do Sarmento Pimentel acrescenta seguramente muito. Tal como outras quatro, que formam grandes núcleos no espólio do meu pai e também na sua vida.
De quem se trata?
No Brasil, duas pessoas que integram o seu grupo e com quem colabora regularmente. Primeiro o Fernando Lemos, depois o Adolfo Casais Monteiro, cuja correspondência começa com uma carta que o meu pai envia à Presença e é ele que responde. Neste caso, é uma troca eminentemente literária, de duas pessoas que têm imensos pontos em comum, da poesia ao exílio. A estes dois nomes será necessário acrescentar os de Ruy Cinatti, que foi o meu padrinho, outra figura fundamental na vida do meu pai, também formado em ciências, o que é um aspeto que tem de ser valorizado. E José Blanc de Portugal, esta sim muito difícil de publicar por ser interminável. É “o” grande amigo do meu pai. Conheceram-se na adolescência e mantêm uma amizade muito forte.
O seu pai deixou instruções específicas sobre o que fazer com as cartas?
Não. É certo que fazia cópias de tudo, que depois a minha mãe juntava. Aliás, há correspondências que depois continuam com ela, o que introduz uma outra dimensão no espólio. Colaborei em diversas fases com a minha mãe, num trabalho que agora já não pode cumprir. Ela seguiu os seus critérios, eu avaliarei agora as oportunidades. Qualquer correspondência apresenta sempre uma questão fundamental, que é o registo em que se escrevem as cartas.
O registo íntimo?
Exato. Há uma forte tradição epistolar na Europa, cartas que se liam nos grandes salões, sobretudo nos séculos XVII e XVIII. Serão as cartas do meu pai assim? Sim e não. Depende. É preciso pensar e tomar decisões face aos problemas que se apresentam. Porque se é verdade que as pessoas mudam de opiniões, às vezes sobre uma pessoa, o que pode dar origem a equívocos de coerência, por outro, as cartas por vezes sublinham aspetos menos valorizados na personalidade do meu pai, como a sua enorme generosidade.
Diz-se muitas vezes que Portugal é país ingrato para as suas figuras ilustres. Estará este cenário a saldar essa dívida para com Jorge de Sena?
Ainda perdura a ideia de um escritor hermético, difícil de compreender. Mas novos leitores mostram-me que essa não é uma ideia geral e que a sua obra continua a fazer o seu caminho. Dizem-me até que Sinais de Fogo se tem afirmado como uma obra de referência para as novas gerações, inclusive ao nível das várias identidades sexuais. Fico muito contente por ouvir isso. Uma das dimensões mais interessantes no meu pai e que aparece em diversos momentos é a defesa da liberdade, a fluidez de géneros, que lhe permite essa abertura para comunicar com leitores de todas as idades, tendências, pertenças e opções.