Está a haver uma grande revolução nas atitudes face à sexualidade nalgumas sociedades ocidentais. Desde tempo imemorial que a sexualidade masculina se afirmou na subjugação da mulher. Consequentemente, a sexualidade feminina tem-se manifestado numa real ou aparente submissão ao homem. Ovídio, na Arte de Amar, usa símiles militares para caracterizar as relações entre homens e mulheres. E esses símiles são retomados por Sade e por Laclos quando descrevem os comportamentos dos bravos libertinos em relação às suas virtuosas vítimas. Eles eram os conquistadores, elas as conquistadas. Fortificações a derrubar. Eles eram por isso socialmente admirados, e elas ficavam socialmente desgraçadas. A desgraça delas era o triunfo deles. A lei garantia que assim fosse. O poder económico, político e social estava com eles. A mulher era o veículo biologicamente necessário para a transmissão do poder de um homem para outro homem. A verdadeira luta era portanto entre homens. De um lado, o pai ou o marido proprietários da mulher; do outro, o amante violador da propriedade. A mulher não era o sujeito da contenda mas um objeto passivo da conquista usurpadora de uma rival autoridade masculina.
O libertino Don Juan (ou, na ópera de Mozart, Don Giovanni) assalta Donna Anna e depois mata-lhe o pai. É por esta subsequente violação que vai ser punido. Quer isto também dizer que havia – e continua a haver – uma fundamental confusão do poder político, económico e social com a sexualidade. Mesmo na perceção social da homossexualidade masculina foi sendo feita, ao longo dos séculos, uma incongruente distinção entre o “viril” agente ativo e o “efeminado” recetor passivo. Como se o exercício da sexualidade humana fosse assim tão unidirecional. Ou se reduzisse a entradas e saídas. Fosse como fosse, as leis contra a homossexualidade masculina foram tantas que só isso bastaria para demonstrar que era uma prática disseminada e persistente.
É certo que, também desde sempre, houve mulheres que, mais ou menos disfarçadamente, se não submeteram ao poder masculino. Tanto em relações de intimidade sexual com outras mulheres quanto na clandestinidade do adultério com homens. Levando, por exemplo, os albigenses (que iriam ser militarmente destruídos em cruzadas vingativas) a uma subversiva valorização espiritual do amante em relação ao marido, opondo o verdadeiro amor à conjugalidade. E, na sexualizada linguagem sociológica oitocentista de Proudhon, a uma fundamental distinção entre a “propriedade” como um roubo personificado no poder legal do marido e a “posse” como um direito consensualmente exercido pelo amante.
Mas havia as leis e as punições. Havia uma tirania exercida como virtude. Incongruentemente, o adultério praticado por um homem (habitualmente com uma mulher…) era aceite com bonomia, mas quando praticado por uma mulher (geralmente com um homem…) ela podia ser punida com a morte. Como aliás foi aprovativamente invocado por um juiz português, no recente caso da senhora que havia sido conjuntamente agredida com um cacete de pregos (ah, a simbologia fálica!) pelo marido traído e pelo amante rejeitado. O caso foi amplamente comentado, e não só em Portugal. Não há muito mais a dizer, exceto talvez para acentuar que o terceiro agressor nessa patética parceria masculina foi o psicopático juiz, obviamente a sentir-se tão corneado como os outros dois energúmenos. Bom, sim, mas o acordão também foi assinado por uma mulher: uma juíza cuja justificação foi dizer que não tinha lido o que o varonil colega escreveu e ela se limitara a assinar. À patologia social acrescentou portanto a irresponsabilidade profissional. Com hábitos antigos de submissão feminina à autoridade masculina… Mudam-se as leis, mas a tirania pode sempre arranjar novos modos de persistir. E assim (parafraseando o velho Fernão Lopes) se vai continuando, com boas leis e maus costumes, que é cousa gravosa de ver.
É no entanto inegável que muitas coisas mudaram no nosso tempo. E que continuam a mudar. Com novas e melhores leis facilitando uma crescente paridade social, política e económica entre homens e mulheres. Com o devido acesso das mulheres à educação e a cargos diretivos. Com o direito ao aborto, que nenhuma mulher deseja praticar mas que é o seu direito decidir se sim ou não. Com casamentos entre homossexuais, quando ainda há pouco tempo, na liberal Inglaterra, teriam sido presos e podiam ser legalmente submetidos à castração química. Numa recente entrevista, o grande ator shakespeariano Ian McKellen, ao ser muito elogiado por ter “saído”, pondo em perigo a sua carreira profissional, comentou cansadamente que melhor seria se o que cada um faz com quem – homens e mulheres – em relações consensuais deixasse finalmente de ser um assunto relevante.
Também ouvi há dias uma sensata deputada trabalhista acentuar que o crescente e generalizado protesto contra os assédios sexuais ultimamente (e finalmente) revelados em vários países e em todos os setores da sociedade têm sobretudo a ver com o exercício ilegítimo do poder político, económico e social. Nenhum dos homens acusados de assédio sexual era dependente das mulheres ou dos rapazes que assediaram, mas todas elas e todos eles eram profissionalmente dependentes desses homens. A conclusão é evidente. A sexualização do poder é uma consequência económica, política e social. Que afeta todos nós, mulheres e homens.JL
Helder Macedo: A tirania da virtude
JORNAL DE LETRAS Helder Macedo fala sobre a sexualidade nalgumas sociedades ocidentais.
Mais na Visão
Parceria TIN/Público
A Trust in News e o Público estabeleceram uma parceria para partilha de conteúdos informativos nos respetivos sites