Autor extremamente ativo, publicando em média um livro a cada ano e meio, José Rubem Fonseca (nascido em 1925) mantém um ímpeto jovem de produção aos 92 anos. E isso não acontece por acaso, revelando a essência de uma proposta estética. Não há desânimo em seu trabalho de ficcionista nem no ritmo de suas narrativas, voltadas para a perceção do redemoinho existencial do presente. Movido por um priaprismo literário, o ficcionista não deixa esmorecer o desejo de escrita. Cada livro seu é proposto como estreia, mesmo quando glosa linguagens e temáticas já consagradas em sua bibliografia.
Seu mais recente volume é uma coletânea de contos que tem no título uma pista estrutural. Calibre 22 (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017) traz narrativas rápidas, obtidas com a mesma facilidade com que os seus narradores usam as armas para fazer justiça por conta própria ou para ganhar a vida no mundo do crime. Rubem Fonseca (RF) puxa o gatilho a cada frase. Brevidade e rapidez não são, portanto, acidentes neste autor, funcionando como um programa ficcional.
Marcada tragicamente pelas mortes por bala perdida, uma constante no noticiário brasileiro, a cidade do Rio aparece no livro como uma paisagem social dominada pelo crime, sob uma saraivada contínua de disparos trocados entre bandidos, policiais e mesmo por um ou outro cidadão. O Rio entra como estilo, como recurso estético, neste ritmo alucinado de histórias que se misturam e se sucedem, entre a novidade e a reprise, com tema e forma se sobrepondo parar criar uma perceção do perigo de se viver nos trópicos.
Se a cidade é a linguagem do livro, o autor busca se confundir com os múltiplos narradores em primeira pessoa, que percorrem uma realidade social podre, mantendo alguma ética, embora sejam declaradamente contraventores. Um dos exemplos deste tipo de postura aparece já no segundo conto: “Eu tenho os meus princípios, já disse. Não mato mulher, criança e anão. E sou honesto” (p.17). Ao afirmar uma honestidade dentro do crime, defendendo o seu trabalho de matador de aluguel, o narrador evita fortalecer as dicotomias entre bem e mal, caminho para a subarte e para a eliminação total do outro.
Em vários contos, o narrador se chama José, nome genérico que serve a qualquer brasileiro, embora também os vincule ao autor que assina o livro. Este José que sustenta os relatos não tem paciência com os dominadores, descartando-os, recusando-os e muitas vezes matando os que ele considera perversos, como se vivêssemos uma época apocalíptica, o fim das instituições, quando só resta a luta solitária do franco atirador para se manter vivo. Esta mesma impaciência se manifesta na linguagem, feita de frases curtas, de pouca descrição, de conceitos incisivos, o que permite a construção de uma narrativa literariamente irritadiça, que joga o leitor sempre para a próxima história, que não trará grandes novidades. Com isso, mais do que contos que se fixem em nossa memória, nos apresenta um clima, um estado de tensão constante.
Viagem a estes temas, a coletânea tem que ser lida como movimento por um mundo hiperbolizado. Abrimos suas páginas e entramos diretamente neste Rio ficcional, temendo alguma bala perdida. Esta técnica cria um naturalismo estrutural, em que o contacto com a linguagem nos deixa em situação de risco.
Neste meio perverso, há um exacerbado princípio masculino, que elege eros e a literatura como únicas salvações, ou apenas ocupações dignas de serem experimentadas. Narrador do conto-título do livro, velho conhecido dos leitores de RF, o doutor Mandrake avalia o caráter de Ari, que se define como filógino, um apreciador de mulheres, o inverso de misógino: “Um homem que gosta de charutos e mulheres tem que ser uma boa pessoa, pensei” (p.163). Este princípio norteia toda a sua literatura. O desejo pelas mulheres é uma forma de humanismo erotizado, e ele se vale da mulher como metonímia do outro (transexuais, como no conto “Cibele”, gays anões, crianças, pobres, animais etc.). Mandrake reforça sua filosofia páginas adiante: “A única coisa boa no mundo, além dos charutos, eram as mulheres” (p.170). E a estas duas experiências acrescenta a literatura: “Não sei se já disse que gosto muito de duas coisas, mulher e poesia” (p.177). Temos aí a profaníssima trindade deste tempo em que o prazer – carnal e estético – resta como um motor humanista.
Viciados em sexo e em literatura, estes narradores não fogem ao confronto com um tempo terminal, com uma sociedade corrompida em toda a sua estrutura, movendo-se por ela sob tiroteios. Sem idealizar nada, evitando visões salvadoras, Rubem Fonseca se faz o autor mais atual da literatura brasileira, traduzindo um país que acabou contemporâneo do resto do mundo pela violência extrema.JL
Rubem Fonseca: o narrador como atirador
Rubem Fonseca “Puxa o gatilho a cada frase. Brevidade e rapidez funcionando como um programa ficcional”
Miguel Sanches Neto escreve sobre Rubem Fonseca e o seu recente livro Calibre 22
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