Bocage – Antologia de Poesia Erótica está a chegar às livrarias, com organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765/1805) foi um grande poeta, muitas vezes mais ou só conhecido pelos poemas eróticos, ou mais do que eróticos, pornográficos – e até pela anedotas, com muitas das quais não tem nada que ver. Mas se a sua poesia está muito longe de se confinar àquele campo, a verdade é que também nele, e nos “sonetos amorosos” que com eles não se confundem e constituem a primeira parte deste voluma, particularmente se distinguiu e representa um caso raro na nossa lírica. Assim, não pode deixar de despertar interesse, à partida, uma antologia da responsabilidade de quem é, em simultâneo, poeta e também ensaísta e crítico literário, além de docente universitário, de reconhecida qualidade. Por isso o ouvimos sobre este livro, que inclui também uma cronologia biográfica.
Jornal de Letras: Porquê, e qual o objetivo, desta Antologia?
Fernando Pinto do Amaral: Ela corresponde a uma constatação relativamente simples: a de que a poesia de Bocage não é tão conhecida como se pensa. Ou melhor, pode ser aparentemente conhecida ou até bastante comentada por causa das histórias que por tradição estão associadas ao seu autor, mas não é, de facto, muito lida. Em certos casos, como os de Bocage, os nomes dos autores tendem a sobrepor-se ao conhecimento das suas obras. De certo modo, ele acabou por se transformar num mito que extravasou a leitura dos seus textos. Para essa lenda contribuiu certamente a sua vida errante e aventurosa, às vezes à beira do abismo, com aquela atitude boémia de quem quis viver cada experiência sem se preocupar com as consequências. Mas a poesia é referida através de fontes indiretas. E neste momento há uma geração de leitores que tem uma genuína curiosidade em ler os textos bocagianos.
E a poesia de Bocage merece continuar a ser lida. Como situa o poeta e sua obra?
A poesia de Bocage é um mundo vasto e esta antologia apenas uma tentativa de o percorrer, nas suas variadas facetas. A temática amorosa prevalece em muita coisa que ele escreveu e serviu-me de fio condutor para a escolha dos textos, mesmo tendo a consciência de que terá ficado muita coisa de fora. Quanto a uma perspetiva histórico-literária, digamos assim, Bocage é um autor de transição, ou seja, alguém que se situa numa difícil encruzilhada entre o peso da retórica arcádica, ainda bastante clássica – que o marcou desde a juventude – e, no polo oposto, a irreprimível vontade de exprimir, com a subtileza possível, as mil e uma vibrações emocionais que lhe alimentaram uma personalidade fascinante e contraditória. Tudo isso que nas classificações da história literária é geralmente designado como pré-romantismo, na medida em que anuncia já o clima estético e emocional que irá dominar a primeira metade do século XIX.
As questões do erotismo, mesmo da pornografia, colocam-se agora em termos muito diferentes de outros tempos, o que pode influir na leitura destes poemas…
Hoje em dia a pornografia está liberalizada, pelo menos no Ocidente, e a verdade é que o erotismo bocagiano é muito mais interessante, muito mais denso, do que a simples pornografia patente nalguns textos mais conhecidos. Por isso o tema da antologia acaba por ser o amor, num sentido lato da palavra, e os poemas selecionados para a antologia falam de amor, nas múltiplas formas e nas implicações que a palavra pode ter, embora o que mais salte à vista e possa excitar ainda hoje o interesse de um público mais vasto diga respeito às composições eróticas, escritas numa linguagem propositadamente obscena e recorrendo a imagens muito explícitas, em que abundam as alusões aos órgãos genitais tanto masculinos como femininos. É esse Bocage que encontramos em numerosos sonetos eróticos
… e nos poemas “À Manteigui”, “Ribeirada”, etc.
Sim, textos que neste século XXI já não nos chocam tanto pela evocação mais ou menos picante das situações em si mesmas, como sobretudo pela escolha de certas palavras que entretanto sofreram alterações semânticas ou simplesmente caíram em desuso, mesmo na literatura dita pornográfica. E todavia, para lá desse gozo quase infantil de ostentar a obscenidade através da linguagem, para lá das manifestações de uma sexualidade libertina – e nesse sentido ainda muito setecentista –, o que predomina em Bocage é a afirmação de um erotismo que exprime, no fundo, uma noção de que só pela entrega ao prazer conseguimos alguma miragem de felicidade neste mundo. Mesmo que, em última análise, haja nele um pessimismo já romântico e uma volúpia do sofrimento que derivou de uma aguda consciência do seu destino individual, como homem e como poeta. Qualquer coisa de camoniano, digamos assim, e que confere um alcance ainda maior à sua poesia.JL