Literatura e Ciência em palco: Alber-tine, o continente celeste é uma peça ao abrigo do tempo e da memória. Em cena Marcel Proust ao sabor da madalena, numa incursão teatral nos sete volumes da sua obra magistral, em cruzamento com o pensamento de astrofísicos como Stephen Hawking, Lee Smolin, Sean Carroll, Carlo Rovelli ou Pedro G. Ferreira. É a primeira peça escrita por Gonçalo Waddington, que também a encena e interpreta, contracenando com Carla Maciel. Um regresso, de 20 a 24, no Teatro São Luiz em Lisboa e, a 30, no Teatro Viriato em Viseu, depois da estreia em outubro de 2014.
O ator, encenador e cineasta – com duas curtas já premiadas, Imaculado e Nenhum Nome – viu agora escolhida para o Berlinale Co-Production Market, no festival de cinema de Berlim, a sua primeira longa, Patrick, à procura de financiamentos internacionais, a juntar à produção d’O Som e a Fúria, de Luís Urbano e Sandro Aguilar. Mas a rodagem só será em 2018. Até lá, Waddington, como adianta ao JL, vai voltar à escrita para a cena, com O Nosso Desporto Preferido – Uma Civilização do Tipo 3, uma peça que são quatro. Não quatro atos, mas quatro momentos distintos, ao longo de dois anos, o primeiro já em junho no festival Alkantara. Um projeto de fôlego de outra “arquitetura” complexa para refletir sobre o tempo futuro, depois de ter andado Em Busca do Tempo Perdido.
Jornal de Letras: O que buscou de teatral no tempo perdido de Marcel Proust?
Gonçalo Waddington: A escrita da peça foi um feliz acidente.
Porquê?
Em princípio não era eu que a iria es- crever, mas outro autor que tinha con- vidado, quando a ideia começou a es- boçar-se. Disse-me que era complicado, que não estava a imaginar o Proust em palco e que devia ser eu a escrever, porque sabia o que queria fazer.
E como viu Proust em palco?
Apesar de haver a ideia que Proust são muitas personagens, muitos bailes e salões, para mim é uma única voz, a sua voz, o que pensa. É impressionante logo no primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido, a minúcia das descrições do comportamento humano.
Isso foi o que mais o seduziu?
Sim, é muito sedutor por exemplo o modo como descreve o momento da vigília, antes do adormecer. O detalhe com que descreve torna aquelas páginas fascinantes. E ao mesmo tempo, debita uma impressionante cultura. Depois, há o efeito madalena, o cheiro, o sabor que lhe traz à memória muitas coisas que tinha esquecido. Fiquei completamente rendido ainda no primeiro volume e achei que queria fazer teatro a partir daquela obra que é uma catedral…
Um imenso desafio?
Sim. De certa maneira, ainda bem que decidi fazer a peça e procurei logo produtores quando acabei esse primeiro volume, Do Lado de Swann. No quarto ou no quinto, acho que teria tido mais a noção do meu atrevimento, pela magnitude da obra, e talvez nunca avançasse. E talvez já não o quisesse fazer, porque estava saciado, a digerir aquela leitura, de pança cheia…
Proust foi o seu ponto de partida?
Sim, li os sete volumes numa verdadeira corrida contra o tempo, estão cheios de notas, à procura das portas de entrada e Proust apareceu em cena. E o tempo.
Cruzou aí o pensamento científico, as teorias de vários cientistas contemporâneos. Porquê?
Ao ler Proust forçosamente temos que pensar o que é o tempo. E tive vontade de ler sobre isso. E a astrofísica e a cosmologia dão respostas muito interessantes a questões que foram pensadas por muitos filósofos ao correr dos séculos. São as questões da identidade, da memória, do tempo.
Mas a Ciência faz parte dos seus interesses?
Sim. E pedi a um amigo, o Pedro G. Ferreira, um astrofísico, investigador em Oxford, que me desse algumas pistas para ler sobre o tempo.
Se adaptar Em Busca do Tempo Perdido já era difícil, ainda complexificou mais a sua tarefa.
Por outro lado, facilitou. Adaptar só um volume, tirar uma parte da história, como amostra, isso seria pior. Na verdade, Proust discorre páginas e páginas sobre estratégias militares, batalhas e outras coisas. Ao deslocar o foco para a ciência, na conversa inicial com o público, de alguma forma estou a fazer o que Marcel Proust hoje poderia fazer, falando bastante tempo sobre estas questões científicas. Reservo-me o prazer de achar que se vivesse hoje seria um ávido leitor destes livros. Não é uma adaptação e tomei essas liberdades.
É uma leitura contemporânea?
Exato. E resolvi que a minha personagem, o meu Marcel não é o de Em Busca do Tempo Perdido, mas todas as suas personagens, tudo o que quisesse. E quis que o palco fosse o seu salão em que disserta sobre o tempo. Essa ideia seduziu-me e encontrei uma maneira de viajar no tempo, o efeito madalena.
A sua personagem fala para uma mulher que está calada.
É Albertine. Ele está com ela, mas não a ama, não a admira, não consegue viver a dimensão presente do tempo. Mas basta ela sair porta fora para começar a vivê-la, a admirá-la. O ausente mais presente, como disse Ruy Belo.
Percorreu os sete volumes em busca da sua própria escrita?
É uma obra de cortar a respiração, nos últimos volumes. A verdade é que nem consigo separá-los. É certamente das obras mais bonitas e importantes que li na vida. E vai continuar a marcar-me. Embora já tivesse feito co-criações, Albertine foi a primeira peça que escrevi e é curioso que apareceu logo muito fechada.
Foi estimulante?
Evidentemente não tenho experiência e a escrita é uma luta constante. Não gosto daquela ideia romântica dos que dizem que sofrem quando escrevem. Esse sofrimento só pode vir da dificuldade. É difícil. Até porque mesmo querendo falar sobre o tempo, não havia tempo. Porque estive um ano e meio a ler e pesquisar só para a peça, enquanto ia trabalhando como ator noutras peças, como a Bovary, do Tiago Rodrigues, e filmando o Mil e Uma Noites.
Proust foi interpretado por Tiago Rodrigues, quando Albertine estreou. Toma agora o seu lugar, na interpretação. Como é dar corpo a uma personagem que criou?
O texto foi escrito a pensar nos atores, o Tiago e a Carla, em quem reconheço características singulares e de grande talento. Vi-os a representar, e não esquecendo que fui eu que pari o texto e que sou eu que vou estar em palco, acho que irei fazer o que o Tiago fazia bem. Sinto o peso da responsabilidade, porque vou estar em cena e vou ser visto e avaliado a ler o meu texto. Então, ele escreve, encena, representa… Olha o ego a explodir, tipo supernova…
Mas o seu lugar na criação é múltiplo, em todas as frentes.
Nem consigo imaginar-me realmente sem estar em todas as frentes. Só funciono dessa maneira. Mas assim sendo, é preciso fazer uma gestão do ego. E do tempo. Sempre o tempo.