Helder Macedo (HM) é um verdadeiro polímata. Tal foi para nós evidente quando com ele trabalhámos no final da década de 1990. Quando digo “nós” refiro-me ao grupo de especialistas que reuni num painel de avaliadores por incumbência da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, com o objetivo de rever os nossos centros de investigação de estudos literários. Tive enorme prazer em convocar um excelente grupo de cinco distintos investigadores internacionais, que me caberia a mim coordenar como o único membro de nacionalidade portuguesa autorizado no painel.
Claro que HM é um cidadão português. Mas não foi difícil convencer as autoridades (a FCT era então presidida por um homem inteligente, o cientista Luís Magalhães, que dependia de outro cientista inteligente, o saudoso ministro da Ciência Mariano Gago) de que HM preenchia os requisitos muito melhor do que qualquer outro “estrangeiro” na sua área: Estudos Portugueses e Brasileiros, da Idade Média ao Século XX. O seu impressionante curriculum vitae incluía obras incontornáveis sobre o Cancioneiro Geral, Camões, Bernardim Ribeiro, Camilo, Cesário, ou Pessoa. Além disso, vivia na Inglaterra desde há muitos anos e ocupava no prestigioso King’s College da Universidade de Londres a celebrada Cátedra Camões.
Ao Helder juntei a professora de Estudos Inglesas e Americanos, Estudos Culturais e Estudos Feministas, Nancy Armstrong (então Brown University hoje Duke), a professora de Literatura Comparada, Ziva Ben-Porat (Tel Aviv Center for Poetics), a professora de Estudos Clássicos, Literatura Comparada e Estudos Culturais, Page duBois (University of California San Diego) e o professor de Estudos Alemães e Estudos Culturais, Hugh Ridley (University College Dublin). Todos eles escreveram eloquentes testemunhos de enorme apreço em A primavera toda para ti, o volume de homenagem a HM, organizado por Margarida Calafate Ribeiro, Teresa Cristina Cerdeira, Juliet Perkins e Phillip Rothwell, e publicado em 2004, por altura da sua jubilação.
Agora, a propósito da celebração dos seus 80 anos, os meus colegas avaliadores e eu própria vamos recordar (nas suas costas, evidentemente) a nossa riquíssima experiência de trabalho para a FCT com o homenageado. Voltámos a lembrar a sua aguda inteligência, a sua imensa erudição, o seu entusiasmo e generosidade intelectuais, as suas cativantes narrativas sobre o seu complexo trajeto de vida de resistente e emigrante político, e sobre a sua criatividade poética e o seu trabalho académico, onde sempre sobressaía a sua paixão por Camões. Nenhum de nós deixará de referir de novo o seu cosmopolitismo, o seu savoir vivre, o seu bom gosto, tanto como apreciador de arte como requintado gourmet, a sua extrema elegância e impecável estilo.
Ziva não se cansa de admirar o imenso âmbito do seu saber. Hugh insiste que só temos de consultar o google quando não temos o HM por perto. Page, que é autora de um livro sobre poesia épica de Homero a Spenser, nunca esquecerá o que aprendeu sobre Os Lusíadas pela boca do scholar mais elegante que jamais conheceu. Para Nancy, Helder é um modelo de como ela gostará de pensar quando for grande; além disso, considera-se hoje uma respeitável conhecedora de vinho do Porto, proeza que diz dever-lhe.
O processo de avaliação beneficiou imenso da sabedoria e experiência de HM, da sua equanimidade e imparcialidade intelectuais, dos seus dotes diplomáticos, da sua gentil maneira de ser, do seu sentido de humor salpicado de ironia. Como equipa, deixámo-nos seduzir pela “simplicidade do [seu] muito saber” (para parafrasear Helder sobre Bernardim Ribeiro), sem negar o regalo que era, depois de um dia de trabalho árduo e delicado, sentarmo-nos com um copo de Planalto bem fresco na mão e conversar com ele sobre literatura, arte, música, política, bem como sobre os momentos tanto luminosos como sombrios da tradição ocidental. Eu, para vergonha minha, não gosto de vinho do Porto, mas lembro-me do dia em que o Helder ensinou os membros da equipa ainda ignorantes a beber um calicezinho no fim do jantar. O que quero dizer é que mesmo sem se saber muito da sua brilhante carreira académica como professor e ensaísta, do medieval e renascentista ao contemporâneo, do seu êxito como poeta e romancista, ou do seu corajoso percurso de vida, quem acaba de conhecer HM e com ele conversa um pouco imediatamente sente que está perante alguém verdadeiramente excecional.
A Nancy, a Ziva, a Page e o Hugh, viriam a ter uma ideia mais precisa da personalidade multifacetada de HM e do impacto das suas realizações mais marcantes, ao receber esse livro em sua homenagem em que também marcaram presença – A primavera toda para ti. O livro abre com o belíssimo poema de amor do Helder da década de 1960 que lhe empresta o título: “Estou a ver que não tenho outro remédio/ senão escrever-te madrigais” (1966). Num volume de mais de 400 páginas, para além de cerca de 50 expressivos testemunhos de admiradores de vários quadrantes, podem ler-se ensaios de outros tantos especialistas abordando diferentes aspetos da sua vasta obra ou assuntos que com ela se relacionam, desde a Idade Média até ao século XXI.
Antes, porém, respondem à chamada com originais seus os artistas com quem o Helder sempre conviveu, pintores e poetas que o ensinaram também a ver a poesia. Belíssimos contributos todos eles, mas, pelo que julgo entender da sua relação com a imaginação criadora do HM, não resisto a destacar a arte de João Vieira (“Retrato de Helder Macedo”) e Bartolomeu Cid dos Santos (“Partes de África”) e o poema de Maria Teresa Horta (“Canela de mão”).
Entretanto, já a escrita criativa de Helder Macedo tinha sido consagrada num livro publicado no Brasil por iniciativa de Teresa Cristina Cerdeira – A experiência das fronteiras. Leituras da obra de Helder Macedo (2002). Não por acaso privilegia este abarcante volume brasileiro a ficção, com largo destaque para Partes de África.
Como reponsável máxima pelos Encontros Internacionais de Poetas de Coimbra (1992-2010), guardo carinhosamente na memória a presença com que um homem tão ocupado e solicitado como ele aceitou honrar o Terceiro (1998). Ele e Suzette Macedo, que generosamente colaborou numa mesa redonda sobre tradução. Dois poemas seus foram mais tarde publicados, acompanhados de belíssimas traduções de Suzette Macedo, em Poesia do mundo 3 (2001): “O laranjal coberto de limões” e “Fui ver e era mesmo uma raposa”, ambos de Viagem de inverno (1994). Aqui deixo, a rematar, o segundo deles:
Fui ver e era mesmo uma raposa
como a outra que atravessou a estrada
aguardando deitada na varanda
onde o gato capado dorme os dias
indiferente à vida libertária
em bocejos de carnes enlatadas.
Se a raposa chamava tinha de ir
dei ao gato a ração obrigatória
e a varanda era a selva a rua o mar
a raposa vermelha um autocarro
dos que não chegam nunca ou já passaram
e exigem sempre o pagamento exacto.
Donde parece que a moral da história
ficou suspensa entre raposa e gato
num protesto aos transportes colectivos
quando afinal a rua extravasou
a selva é sem regresso e sem saída
e todo o viajante é solitário.