Passam 25 anos desde o aparecimento fugaz do projeto musical Lucretia Divina. Tiveram apenas um disco gravado e algumas imagens na televisão mais alternativa, mas também um sem número de referências em fanzines e o fervoroso apoio do antigo jornal Blitz. Sobretudo com duas canções expostas, foi o bastante para que a minha geração de melómanos, mais ou menos punks, ficasse marcada. A par do projeto The Astonishing Urbana Fall, os Lucretia Divina terão sido dessas bandas de que se espera muito, talvez tudo, e, subitamente, não são mais nada. A espécie de implosão a que se deram foi um abandono geracional, uma inconsequência que parecia nossa, de todos, como se falhássemos universalmente numa promessa gorada, quase humilhante.
No depois da Ama Romanta o rock português encontrou menos casos de pura diferença, essa característica alienígena que acomete apenas a quem pode. Na verdade, o underground valida-se na genuinidade, para sucedâneos está o mainstream criado. Nós, naturalmente, procurávamos o que fosse único e pudesse representar a vontade jovem que sentíamos de sermos únicos também.
O modo bagaçado dos Lucretia Divina era um protesto contra o bonitinho da sociedade num bizarro início dos anos de 1990. Quando o dinheiro europeu inventou uma euforia queque no país, a música serviu de questão acerca da superficialidade. Lembro-me de pensarmos os Lucretia Divina como uma preciosa pedra no charco, uma espécie de deleite acusatório. Algo que recuperava o maravilhoso desgarrado dos Mão Morta ou dos Pop Del’Arte e o tornava meio do campo, uma coisa à solta e predadora, como um animal acossado, antigo e sem definição.
Tínhamos a impressão de que andávamos às moças no redor das vindimas, a ver a vida a partir da fruição pura. Eram uma instituição sensorial. A banda fazia-se com o propósito profundamente sensorial de se ser português com saudade e vontade de ter alguma coisa, alguma maravilha, algum sonho. Um certo amor descontrolado e glutão. Tão esperançado quanto já desgraçado.
De alguma forma, os Lucretia Divina eram um pensamento sobre a desgraça. O aspecto mais ou menos tonto da música ilustrava esse à deriva que define o português, mais ainda num tempo de confusão encantatória.
Achámos que os Lucretia Divina desapareceram para dentro da alienação total. Como malucos que criam uma paixão apenas para que o abandono seja memorável. Mas parece que foi outra coisa que lhes deu, também terminadora, que terá sido a disciplina. Acontece até aos mais rebeldes, esse desejo súbito de constituir família e ter uma imagem consequente na sociedade. Foi o que nos aconteceu a quase todos, os da geração, tão punks no passado, tão asseados de cidadãos vinte e cinco anos depois. Continuamos, claro está, todos implicados no assunto, todos culpados por falhar, por sonhar outra coisa, por mudar de música, por acreditar menos ou acreditar em outra coisa qualquer, sempre menor, talvez. Mais desiludida.
Não imagino a que soa a música dos Lucretia Divina hoje para um ouvinte de 19 anos cuja realidade é feita de outra disforia radicalmente distinta. As referências para uma resistência igual à da banda de Viseu estão muito perdidas. Talvez possam ganhar sentido a partir de projetos como A Naifa, ou talvez ainda sirvam as alusões aos mesmos Mão Morta e Pop Del’Arte que, gloriosamente, continuam ativos e pertinentes.
O facto é que o anúncio de um pontual reaparecimento da banda para um concerto comemorativo tem ar de pura ressurreição. Traz à vida uma banda mas, sobretudo, revive momentaneamente o sentimento impagável de se estar num ponto de viragem do mundo. Um certo tempo em que nos colocaram na cabeça que o começo do futuro era pertença legítima da nossa geração. Voltarmos a discutir isso é a assunção de uma falha, como a assunção da morte do futuro. No caso dos Lucretia Divina, uma falha que se expõe esplendorosa. A sensualidade do costume aliada à honestidade do tempo. Como se fôssemos agora capazes de nos regozijar por termos, ao menos um dia, resistido.
O que quero dizer é que já não sei se aquelas duas canções incitarão alguém ao brio de alguma luta. Mas regozijo-me por saber que a memória de alguma luta ainda existe, como se tivesse valido a pena exatamente por isso. Porque somos capazes de nos lembrarmos e, com essa memória, conferir o que podia e o que não podia ter sido,
Lucretia Divina, 25 anos depois
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