O acontecimento literário mais marcante no ano de 1995, na Europa, foi a publicação do último romance do escritor alemão Günter Grass. O título Ein Weites Feld (Uma Longa História), é uma citação de uma das mais conhecidas frases do romance Effi Briest, do escritor prussiano Theodor Fontane (1819-1898), o maior dos realistas alemães.
Essa narrativa de grande fôlego, quase 800 páginas, em tom tranquilo e rememorativo, característico de um estilo de maturidade (Grass conta 68 anos), e na qual o autor trabalhou durante o último lustro, trata, entre muitas outras questões, da unificação da Alemanha e da privatização maciça da economia da RDA, feita por uma empresa autárquica, a Treuhand.
De uma enorme complexidade temática e com uma estrutura temporal organizada em torno de dois momentos cruciais da História da Alemanha, a unificação de 1871, executada por Bismarck, e a reunificação por Helmut Kohl, Ein Weites Feld é um romance histórico de leitura exigente, na melhor tradição da grande produção romanesca alemã deste século. As duas épocas, com desdobramentos e implicações que se estendem de 1848 a 1992, entrelaçam-se e fundem-se na consciência dos principais protagonistas: Theo Wuttke, aliás Fonty, um intelectual da RDA que, depois de suportar a censura do Estado comunista, é rebaixado a estafeta e a propagandista de Treuhand, e o seu espião, Tallhover, que Grass ressuscitaria do romance de Joachim Schãdlich (1986), do mesmo nome, com a justificativa de que na Alemanha a espionagem é imorredoura.
Fonty recria, de maneira sofrida e nostálgica, em permanente paralelismo com a sua própria vida e época, inúmeros momentos da biografia e da obra de Fontane, num processo de identificação apaixonante e no qual se inscreve uma estratégia de auto-sobrevivência, atravessada por profunda ironia, também ela característica marcante do autor de Effi Briest. Tais momentos são, porém, problematizados e manipulados com insinuações, desmentidos, versões e desvios pelo seu companheiro inseparável e agente secreto, que teria sido também espião de Fontane, e ainda pelas dúvidas intermináveis do narrador, o Arquivo Fontane de Potsdam, que obcecado os persegue por todos os lados, na vã esperança de preencher as lacunas e esclarecer os enigmas, que dificultam o seu trabalho arquivístico.
Nesse emaranhado labiríntico de fios cruzados e fragmentos móveis, num exaustivo processo intertextual, a verdade dos factos toma-se relativa e fugaz e o passado, ele próprio, é fruto de uma permanente revisão e reinterpretação da História. Em suma, Ein Weites Feld… Apesar de tudo e em última análise, nada impedirá o reconhecimento e a demarcação de todo um campo de visão, como nos dizem as últimas duas frases do romance, aparentemente casuais e inocentes, quando Fonty, agora Grass, se distancia de Fontane para entregar ao leitor a sua mensagem final.
Aclamado pela editora que o lançou, a Steidl de Gõttingen, como a obra do século, a primeira edição teria os seus 100 mil exemplares esgotados em pouco mais de uma semana. Ainda em Setembro, e já uma quarta edição de 225 mil exemplares estava no prelo. Dois meses mais tarde, o romance conquistava o terceiro lugar na lista da “Spiegel” dos best-sellers da Alemanha.
O novo romance do autor do Tambor de Lata revelava-se, desde o primeiro instante como um fenómeno mediático por excelência, transformando-se no epicentro de um conflito, mais ideológico e político do que literário, entre dois pontos de vista sobre a Alemanha: o daqueles que têm defendido vigorosamente a política de unificação e o dos que, como Günter Grass, nela discerniram uma precipitada e perigosa estratégia de anexação (Anschluss) por parte da República Federal.
A polémica extrapolaria de imediato as fronteiras alemãs e publicações da Europa tão expressivas como o Economist, o Nouvel Observateur, o Times Literary Suplement, o Monde Diplomatique, o European, o International Herald Tribune, o Observer, El País, e outros, registaram o fenómeno com destaque, especulando sobre a obra e aproveitando a maré para revelar preocupação com os desdobramentos históricos da Alemanha contemporânea. O principal deflagrador da polémica foi a decisão, sem dúvida política, da revista Der Spiegel de transformar a capa da sua edição de 21 de Agosto numa fotomontagem, na qual o mais popular e dogmático crítico alemão Marcel Reich Ranicki, vedeta do programa televisivo O Quarteto Literário, surgia enraivecido a rasgar o romance de Grass, a quem dirige uma carta aberta nas páginas interiores. Nela, Ranicki também cita Fontane como crítico literário, assim parodiando o autor de Ein Weites Feld, numa histriónica alusão ao penoso ofício de criticar.
Muitos leitores logo associaram o gesto intempestivo da destruição física do livro de Grass, na capa da mais prestigiada revista alemã, aos autos-de-fé do nazismo. Um artigo do jornal Die Zeit, de 8 de Setembro, assinado por Antje Vollmer, faria a curiosa observação de que à campanha contra Christa Wolf se seguia agora o ataque a Grass, e o Nouvel Observateur, de 27 de Setembro, traria um artigo, da autoria de Ruth Valentini, com um cabeçalho revelador: “Crónica Alemã de um Linchamento Literário”.
A favor de Günter Grass surgiram veementes protestos de artistas, intelectuais e políticos: Milan Kundera, Jean Daniel, Stefan Heym, Jurek Becker, Harry Mulisch, Taslima Nasrin foram apenas algumas das personalidades notáveis que correram a solidarizar-se com Grass. E o Parlamento Internacional de Escritores, sediado em Bruxelas e presidido por Salman Rushdie, e onde têm assento, entre outros, Jacques Derrida, Pierre Bourdieu e Edouard Glisson, fez ouvir a sua indignação.
Enquanto isso, na Alemanha predominava a opinião orquestrada dos críticos mais conservadores, para os quais Günter Grass há muito se transformara num escritor importuno, sempre a intrometer-se em questões políticas, desde a sua primeira campanha a favor de Willy Brandt e do SPD, chegando ao cúmulo de se insurgir contra uma unificação feita, na sua opinião, a toque de caixa e insensível aos custos humanos e sociais. Em Novembro, o próprio Ministro das Finanças, Theo Waigel, e a antiga presidente da Treuhand, Birgit Breuel, acusariam formalmente Günter Grass de injúria e difamação.
Para os observadores mais atentos a essa guerra de atrito, ao longo dos anos, entre o autor e os críticos instalados nos meios de comunicacão, Grass não seria uma vítima inocente na tempestade que varreu a Alemanha. Ele previu o ritual da critica e, manipulando o seu horizonte de expectativa, influenciou a recepção do romance. Revelou com antecipação o assunto da obra, atribuindo-lhe a dimensão de uma narrativa histórica, representativa desta última década. O lançamento foi meticulosamente preparado e, pelo menos, 4500 exemplares foram distribuídos gratuitamente, dentro e fora da Alemanha, com farta publicidade mediática.
No conjunto, isso equivaleu a uma verdadeira ofensiva literária, coerente com a sua convicção profunda de que, depois de Auschwitz, lhe cabe o dever de manter sempre viva a memória critica da História. Fica muito claro que Günter Grass pretendeu fixar para as gerações futuras a sua visão singular da História neste fim de milénio, jogando irremediavelmente para o ar o Prémio Nobel 1995, que iria parar às mãos do poeta irlandês Seamus Heamey.