Sono de Inverno é um filme que apetece ler várias vezes, como uma peça de Tchekov ou um romance de Dostoievski. Quando se fala da relação entre cinema e literatura, amiúde se referem as adaptações de grandes clássicos, e esquece-se o sentido ainda mais direto dado pelos raros cineastas que tornam as suas obras objetos de densidade literária (sem sequer recorrerem à adaptação). É o caso paradigmático de Ingmar Bergman, mas também de Nury Bilge Ceylan, o cineasta turco, que recebeu de forma inteiramente justa a Palma de Ouro em Cannes, deixando o prémio especial do júri para Mamã, do jovem prodígio do Canadá Xavier Dolan.
A referência a Tchekov nem é a mais óbvia, pois o filme, cuja personagem principal é um ator retirado que gere um hotel na Anatólia, está pelejado de referências endógenas a Shakespeare. A começar pelo nome do hotel, Othelo, o cartaz de António e Cleópatra junto à receção e as citações avulsas ao longo do filme. Nada disto torna o filme presunçoso ou restritivo a eruditos, pois, como em Shakespeare e Tchekov, debate-se as grandes questões da vida nos intervalos do quotidiano.
A primeira conquista de Celyan é o ambiente. Na belíssima região de Anatólia, na estepe, longe da azáfama de Istambul, num templo natural de paz e turismo, com casas esculpidas nas rochas para agradar os visitantes e aldeias remotas e sujas longe da vista e do coração. É neste hotel, próximo do paraíso, que encontramos as personagens centrais, pertencentes a uma certa classe dominante esclarecida. A família é tomada por uma latência lânguida, visível de forma mais vincada na preguiça da irmã, mas também presente na mulher, que procura encontrar o seu espaço num marido civilizado e aparentemente quase perfeito, e no próprio Aydin que se entretém a escrever crónicas para um jornal local em que reflete sobre um povo de que está distante. É como se todos eles vivessem em profunda sonolência, um estado ermita, que os coloca numa posição superior, não só socialmente, mas com vista panorâmica sobre os outros. O próprio hotel reforça a ideia de sono que se concretiza, metaforicamente, na perna dormente de Aydin, mas que tem rasgos de desejo, em pequenos sinais, como o visitante aventureiro ou o cavalo selvagem que é devolvido à natureza.
O que intriga na personagem de Aydin é que a sua construção não é nada óbvia. Não chega a ser odiosa, nem mesmo nos momentos mais críticos, mas entendemos subtilmente os motivos de conflito, interiores e exteriores e até certo ponto a sua covardia, a culpa e a desculpa.
Sono de Inverno, tal como Climas, é um filme sobre relações. Há a relação entre os irmãos, onde se revela que o poder aniquilador de Aydin supera o desequilíbrio desbocado de Necla. Ou da relação conjugal, no limbo subtil de conflito, de emoções desgastadas, rarefeitas, em busca de um ponto de equilíbrio, que evite a derrocada de uma estrutura em ruínas. Mas, mais interessante do que tudo isto, e nesse ponto divergente de Climas, Sono de Inverno acrescenta o tópico da luta de classes, que ao longo dos tempos se reinventa, mas nunca entra em desuso.
Consegue-o através do desenho de uma teia relacional simultaneamente moderna e arcaica. Não há um relacionamento direto entre Aydin e Hamdi (o pobre bom) ou Ismail (o pobre mau), ou qualquer outro dos seus inquilinos. Tudo é feito através de Hidayet, um capataz, do estilo mais papista que o papa, que trata de todos esses assuntos mundanos, dando-lhe espaço para se dedicar a assuntos maiores como as artes e as letras. Aydin lava as suas mãos do trabalho sujo, esquiva-se das zonas de conflito, finge-se parte não implicada nem interessada. Só que essa realidade atravessa-se-lhe na estrada sob a forma de uma pedra atirada à janela do carro pelo filho de Ismail cuja casa foi penhorada. Mas na visita forçada à casa do inquilino o que o choca não é a carência de quem passa fome e não tem com que pagar renda, mas sim o desleixo estético (a sujidade, a desarrumação), que, na sua perspetiva, não se justifica pela falta de dinheiro. Essa relação, de forma relativamente arcaica, também está espelhada em Nihal, a sua jovem mulher, que se dedica à caridade, e pensa com ela resolver os problemas de consciência social. Mas o plano é invertido pela visceral personagem de Ismail, que o próprio Ceylan chama de utópica – é utópica na sua consciência de classe, se fosse padrão far-se-ia mil revoluções por minuto.
Ceylan, que escreveu o argumento a meias com a sua mulher Ebu, tem a rara capacidade de criar personagens densas e complexas, mas que cumprem os seus papéis narrativos sem se sobreporem. Não há uma tomada de posição, tão pouco uma perspectiva evolutiva, ou uma divisão entre heróis e vilãos. O filme confronta-nos com a vida e a sociedade como ela é. E desconcerta-nos ao não apontar direções, a não ser a sugestão de que cada um represente o seu próprio papel.