Com uma epígrafe de Nuno Júdice, retirada de um livro intitulado Geometria Variável, de 2005, o mais recente livro de Alice Vieira (AV) – autora consagrada na difícil arte do livro para crianças (e esta designação nada tem de pejorativo ou de menoscabo, muito pelo contrário) – parece ainda repetir, ou regressar, a alguns dos tópicos que no livro Dois Corpos Tombando na Água (2007) ou no volume O Que Dói às Aves (2009) poderíamos relacionar com a tristitia, a melancolia. Há livros assim: nostálgicos da perda dum outro, feitos de uma ausência inominável e que só parecem fazer sentido por estarem perto de virem a ser, eles, livros, a concretização de uma outra ausência – a daquele que escreve.
No caso dos livros de poesia de AV, não será por acaso que a ausência é um dos temas mais recorrentes. Talvez por se saber que a poesia fala de qualquer coisa que é indizível, os versos da autora de Os Armários da Noite são sempre versos escorrendo a tinta da melancolia, uma tinta que não é indelével, mas antes propensa, pelo desenho gráfico na página, a certa dispersão ou sugestão de polifonia ou voz entrecortada com imagens dessa ausência que se quer fixar. A tinta da poesia, a tinta da melancolia torna-se gesto apenas interessado em falar para dentro como se ninguém mais nos ouvisse. Por isso é um gesto cujas consequências são verdadeiramente poéticas. Uma vez que a ausência se torna presente, a voz que fala nestes textos tem de se virar para fora, contar, narrar o que sucedeu, fazer da poesia uma reportagem do mundo íntimo.
Abrir as gavetas desse armários da noite, eis o que este livro de AV parece fazer. Abrir as gavetas como quem abre o poema e dá a ver aos leitores não só a organização de um mundo de linguagem, mas – e sobretudo – a organização de uma linguagem que comporta todo um mundo. Dentro dos armários, nas gavetas que possam eles conter, que encontraremos? Imagens, evocações, cenas, encontros e desencontros, viagens, tangos, “fandangos orquestrados”, como escreveu um dia David Mourão-Ferreira… A epígrafe, aliás, convém ser lida como convite a uma estranha orquestração: “… não convém abrir os armários da noite/ mesmo que as sombras nos peçam/ o que está dentro deles”, escreve Nuno Júdice. Mas perante a injunção, o conselho, o pedido, o aviso, como pode o leitor, como pode o poeta que a outro poeta responde, deixar de abrir os armários da noite? Se, para mais, os armários são o poema e a expressão “armários da noite” um zeugma (não se abrem armários da noite, pois não consta que a noite tenha armários) que torna fecunda uma leitura não literal do que nos parece confissão à noite, ou gesto romântico, então a resposta, a réplica entre poetas talvez faça sentido, não porque AV concorde com os versos de Júdice, mas sim porque os versos de Júdice dizem o que os poemas de Alice vêm dizer.
A noite, esse tempo da meditação e da solidão criativa é, de facto, configurada como armário que tudo pode conter, encerrar e que, por meio da escrita, será aberto. O poema resulta desse gesto de abrir a noite, o armário (os armários) da noite, dando a ver “o perigo de acumular silêncios em/ corredores vazios ou/ qualquer outro vício que/ a vida nos traz”. De vícios, de vida, de corredores vazios nos fala uma voz (auto)biográfica. Há, aliás, uma atmosfera que alinha com o teor destes textos: uma atmosfera que vem de certa boémia lisboeta, de uma “Lisboa à balda”, na conhecida expressão de Cardoso Pires. Mas sucede que essa boémia não é sinónimo (e talvez não tenha sido nunca), de alegria ou flashes súbitos de quaisquer discotecas, tais quais as do nosso “tempo detergente”. A boémia, o tango, os fandangos orquestrados, os uísques, hotéis, aviões, conversas acabadas ou por acabar, tudo isso é, neste livro, sinónimo de memória, de uma dolorosa aprendizagem das ausências que a vida inevitavelmente traz. O problema que se coloca é precisamente o de saber como falar dessa ausência que torna o tempo um escultor exímio de rostos que já não estão aqui, mas que estão dentro de nós, talvez mais reais porque a memória os aprofunda, os aperfeiçoa e os torna fantasmas nossos, familiares ausentes…
E como falar, pois, de fantasmas? E, de certo modo, como não falar? Não disse Maurice Blanchot que a poesia é sempre conversa com a ausência que nós somos para nós próprios? E o nosso Correia Garção, não escreveu um dia que os livros eram, em certa medida, conversação com os mortos? É, aliás, uma intricada questão, esta. Por que razão se há-de escrever um livro que parece afirmar a impossibilidade de resgatar do passado aquilo que se recorda? Ou melhor: por que razão se escreve um livro quando, no limite, aquilo de que se fala já passou, não torna mais e se torna, não tornam as idades? Talvez porque a própria escrita se transforme em exercício evocativo que no seu fazer se torna um lugar onde esses fantasmas se animam de novo. E é nesse sentido que um livro de poesia que esconde a lógica de um livro de memórias pode ser lido na sua condição híbrida. A ser assim – espécie de livro de poesia que agencia o autobiográfico ou que propende ao registo das memórias – o melhor será fechá-lo, ao livro, isto é, aos armários, e ficar convencido de que estes textos não são o que dizem ser: poesia. Mas, em rigor, quando é que a poesia não é memória e autobiografia? E quando é que a autobiografia tem de ser o mero registo de verdades puras já por alguém passadas? A autobiografia esconde, oculta, subtrai (e trai) o que se diz ser. É, como se sabe, um escrito ficcional. O eu que fala é e não é o autor, o detentor da autoridade sobre o escrito. Mas, no fundo, se estamos no domínio da ficção e da literatura, mesmo poemas como os de Alice Vieira, que nos podem parecer tão autobiográficos e tão perto de uma chamada “Literatura do Eu”, mesmos estes textos, não deixam de se afirmar no seu grau de fingimento, de ficcionalidade. Este livro é, pois, um livro de poesia que, colocado sempre na primeira pessoa, se reiventa a cada passo e desestrutura, ou se estrutura, como puzzle de uma memória em movimento.
É, de resto, sintomático que os textos não tenham títulos. São numerados, como se intensificando a ambiguidade entre o regime da poesia e o que poderia ser visto como diário, submetido à ordem do calendário, à cronologia, enumeração dos dias e tempos, que se evocam. O poema primeiro é, a todos os níveis, um texto estranho, ambíguo: “por vezes surge-nos mesmo a tentação de/ as tapar com os lençóis brancos das arcas/ onde as avós nos organizavam o futuro/ e que nunca usávamos porque/ eram de linho e o linho/ dava muito trabalho a engomar/ mas rapidamente entendíamos que/ também as palavras davam muito trabalho a desdobrar/ na nossa língua e/ embora uma ou outra ainda tentasse brilhar/ acabavam sempre por encontrar o caminho de saída/ onde o rasto dos crimes perfeitos as esperava”. É a partir dessa ideia de desdobramento da língua / linho que, no limite, Os Armários da Noite se tornam obra, desdobrando-se, abrindo-se em jeito de memórias, evocações, (bio)grafia.