Uma versão do Guiness Book of Records dedicada ao cinema teria várias páginas sobre o fenómeno Manoel de Oliveira. O único realizador mundial em atividade que começou a sua carreira no cinema mudo prepara-se para voltar a bater o seu próprio recorde. Amanhã, quinta-feira, 11, faz 106 anos e vai estrear-se em sala a sua mais recente obra, O Velho do Restelo. Uma iniciativa notável do Cinema Ideal, em conjunto com a produtora O Som e a Fúria. Os 19 minutos de O Velho do Restelo são curtos para uma sessão, o filme vem no pacote de curtas, que começa pela sua obra-prima inicial Douro, Fauna Fluvial, passa por O Pintor e a Cidade e Painéis de São Vicente – Visão Poética, filme encomendado por Serralves que ainda não tinha passado em sala.
A urgência do cinema, isto é, de transformar ideias em filmes, fez com que, pragmaticamente, tenha reduzido a duração das películas até ao formato curto. Simultaneamente, nas últimas obras, intensifica-se a intenção didática e de divulgação da História de Portugal, porventura direcionada especialmente para um público estrangeiro (que na verdade é a maioria do público de Oliveira), como quem quer contar histórias de Portugal. Assim acontece com os Painéis de São Vicente, e assim acontece nas fases mais explicativas de O Velho do Restelo.
Em O Velho do Restelo, mais do que convocar a determinante personagem da epopeia de Camões, convoca o próprio poeta para que, ao lado de Cervantes, forme uma união ibérica poética, histórica e cultural, na herança da profecia do velho do Restelo, resumida na ideia de que “a grandes vitórias sucedem-se grandes derrotas”. Fala-se pois da decadência dos povos peninsulares, no seu conjunto, numa história paralela ou comum.
Numa leitura cruzada entre as duas obras diz-se: “O mar pariu Os Lusíadas, a alma humana Dom Quixote“. E, assim, assumidamente, Manoel de Oliveira bebe de ambos para traçar um perfil ibérico, inevitavelmente ligado à memória de tempos gloriosos e a uma ilusão de grandeza que, no caso espanhol, se traduz com as batalhas perdidas e imaginadas do cavaleiro de La Mancha, no caso português reforça-se com a derrota de D. Sebastião em Alcácer Quibir. Dom Sebastião também é convocado para este filme. Encontramo-lo no campo de batalha. São-lhe pedidas palavras de incentivo para os seus homens, mas ele nada diz. E a câmara foca os rostos dos bravos guerreiros prestes a entregar-se à morte.
O encontro entre Camões e Cervantes, ou entre o velho do Restelo e Dom Quixote, lembra outra pequena obra, encomenda de Cannes, Um Encontro Único, em que imagina o encontro entre Krutschev e o Papa João XXIII. Só que enquanto na primeira havia uma ironia e um humor assumidos, aqui o conteúdo é denso e aproxima-se da grande reflexão feita sobre o País, em Non, ou A vã Glória de Mandar.
Há pelo menos 20 anos que Manoel de Oliveira realiza cada filme como se fosse o último. Mas neste essa urgência testamentária parece ainda mais evidente. É uma espécie de albergue espanhol, onde ele convoca personagens e figuras marcantes na sua filmografia. Além de Camões e Cervantes, chama à cena Camilo Castelo-Branco e Teixeira de Pascoaes. A ideia de síntese, a emergência da mensagem num desafio do tempo é mais evidente do que nunca.
Pela primeira vez em exibição comercial passa também Painéis de São Vicente, Uma Visão Poética. Aqui há um minimalismo quase primário, em que o próprio São Vicente, saído do quadro, explica o painel, acompanhado por todas as personagens, redundando num elogio do cosmopolitismo e tolerância no Portugal no século XVI.
A sessão é engrandecida por O Pintor e a Cidade, 1956, um documentário sobre o pintor António Cruz; e sobretudo Douro Fauna Fluvial, uma obra prima do tempo do mudo, de 1931, que será apresentada com banda sonora de Emmanuel Nunes.