“A fertilidade das mulheres é um caminho de sangue e dor – disse Júlia, com uma fileira de alfinetes na boca”. É com estas palavras que se inicia Terra de Milagres, o primeiro romance de João Felgar. E, com ele, uma nova fase da sua vida.
Juíz durante mais de duas décadas, em paragens como o Alentejo, Açores e Timor-Leste, aos 44 anos, abandonou a magistratura para fazer o que mais gosta: escrever. Deixou Timor, onde esteve nos últimos quatro anos como juíz internacional, e instalou-se em Lille, no norte de França. “Uma cidade com um clima horroroso, em que só dá vontade de ficar em casa a escrever. Por isso, é onde me sinto bem”, diz, ao JL.
Não esconde, no entanto, os “riscos” da mudança. Até porque teve de (re)começar do zero. A sua experiência de escrita era quase nula. Não tinha textos ‘na gaveta’, nem diários ou cadernos com apontamentos de ideias a desenvolver. “Nunca consegui encarar a escrita como um hobbie. Chegava do trabalho sem a mínima disposição. Só me apetecia ficar sentado em frente a uma parede branca e, se ninguém me chateasse, melhor”, revela. Na ‘bagagem’, levava apenas um conto – publicado numa coletânea de contos escritos por juízes, A Fazer de Contos, publicada em 2008, pela Coimbra Editora. E a vontade de “parar para escrever”. Foi o suficiente.
A ideia para o romance, que agora chega às livrarias, surgiu-lhe de uma notícia sobre a ida de mulheres ocidentais para a jihad, com o intuito de se tornarem “mártires ou guerreiras”, conta. Mais do que o caso, em particular, interessou-lhe o tema do “processo histórico da conquista do poder” por parte das mulheres; a sua procura de “igualdade, liberdade e emancipação”. Fosse ela pelo lado ‘certo’ ou ‘errado’ da História.
“Trata, essencialmente, de amor e poder. E das confusões que existem entre uma coisa e a outra”, afirma, sobre Terra de Milagres. A ação passa-se numa aldeia, algures no interior de Portugal, no final da década de 70, e gira em torno de quatro mulheres: Júlia, uma “costureira filósofa”, cujo ateliê é palco de acesos e divertidos debates sobre a condição feminina; Leta Mirita e Adelaide, as suas filhas, educadas entre os discursos apocalípticos da mãe e as promessas das novelas cor-de-rosa; e Luzia de Siracusa, filha de Adelaide, que conquista a fama de santa e milagreira, atraindo à aldeia multidões de peregrinos e devotos.De resto, o universo feminino sempre o fascinou, pela “natureza múltipla” das mulheres, diz. “Os homens ou são bons maridos, ou bons pais, ou bons trabalhadores… As mulheres, regra geral, conseguem ser tudo isso em simultâneo. Essas várias camadas tornam-nas mais interessantes e, na literatura, podem gerar personagens muito mais ricas”, considera. Por isso mesmo, o próximo livro, que está já a escrever, é sobre… mulheres.
Liberdade perpétua
Medo de não conseguir escrever. Medo de não conseguir publicar. E medo de não ter leitores, caso viesse a publicar. Eram os receios “naturais” de quem trocava uma carreira estável por um sonho ainda por concretizar, conta. A pouco e pouco, a ansiedade face à ideia da página em branco deu lugar ao prazer da pesquisa histórica e da construção das personagens. E quando finalmente decidiu começar, a escrita fluiu “sem qualquer tipo de angústia”. Antes “com uma certa sensação de humildade” em relação ao processo criativo, diz. E exemplifica: “No meu plano, a Júlia morria logo no início, na noite do temporal, mas à medida que ia escrevendo, sentia que não podia ser. A personagem impunha-se. Existe, de facto, na criação, alguma coisa que não controlamos, e é muito bonito quando nos deixamos levar”.
Publicar, no seu caso, também não foi um bicho de sete cabeças. Depois de dois meses e meio de espera e alguns nãos, foi contatado pela Cristina Ovídio e pelo António Lobato Faria, da Clube do Autor: queriam editar o livro. “O ‘sim’ é algo de muito belo: é como se estivéssemos a assistir a uma grande festa através do gradeamento do jardim, sem convite, até que alguém de lá de dentro vem cá fora buscar-nos e nos convida a entrar”, afirma.
Quanto a ter ou não leitores, o tempo o dirá. Por enquanto, está a colher os frutos da opção que tomou. Um ato de coragem? “Não. Coragem é conduzir uma ambulância nesta cidade!”, responde, entre risos. E adianta: “Segui este caminho porque tinha condições económicas para fazê-lo. Trabalhei para isso. Quando saí de Timor tinhas duas hipóteses: comprar um magnífico apartamento ou tentar ser feliz…”
Nascido em Moçambique, João Felgar veio com cinco anos para Portugal, primeiro para Viseu, depois para Lisboa, onde fez o curso de Direito. Aos 24, iniciou a sua carreira como magistrado. “A profissão deu-me muitíssimo, muitos desafios e oportunidades, mas hoje posso dizer que não era aquilo que me preenchia”, confessa.
Fazer julgamentos era o que mais gostava. De ouvir as pessoas. Conhecer as histórias, violentas, dolorosas, difíceis. E perceber como o mesmo acontecimento muda consoante as diferentes perspetivas. Gostava, na verdade, da dimensão mais “literária” da profissão, observa. “Um julgamento é uma experiência muito forte do ponto de vista humano. Mas representa 10% do trabalho do juiz. Os restantes 90% é lidar com burocracia”, contrapõe.
Por isso, bateu o martelo e afastou-se. Sabe que, um dia, pode ter de voltar. Mas, por enquanto, está a desfrutar daquela que é, para si, a arte mais “livre” de todas: a literatura. A 100 por cento.