Fernando Pessoa não é Deus. É homem. Um homem que escreve como um Deus, vá lá. Mas homem. Com direito a todas as imperfeições de que somos feitos os homens. E não os Deuses. Embora, aqui para nós, tenha eu algumas reservas ante o exagerado pendor celestial pelo perdão – que, nesse ponto, mais razão parece ter Guerra Junqueiro, ao dizer que “o justo que é justo não perdoa”. Sobretudo quando se trata da “maravilhosa beleza das corrupções políticas”, palavras de Álvaro de Campos. Esse “desconhecido de si próprio”, assim se define, é aquele que tantos buscam. O homem por trás da obra. O homem oprimido pela obra. “Em Pessoa, a obra é o homem e o homem é a obra”, disse Octávio Paz. O que é verdade, dada a majestade das palavras em contraste com suas rotinas modestas. Mas não é verdade, inteiramente. Porque, detrás dos autor, há um homem que deita, dorme, acorda, trabalha e sonha. Mas quem é ele na verdade?, eis a questão.
Quem quiser respostas, deve antes de tudo considerar ser necessário compreender o homem e suas circunstâncias – como ensina o mestre Ortega y Gasset. Situar esse homem no seu tempo e em seu espaço. Assim devendo se dar também com Pessoa, que sentiu na carne o fim da utopia do Quinto Império. A humilhação do mapa cor de rosa. O Regicídio. O caos agónico da Monarquia. O caos do início da República. O horror da Primeira Guerra. A ascensão de Salazar. A institucionalização da opressão com o Estado Novo. Ainda se contando ser alguém que viveu só e para sempre em Lisboa, segundo ele “uma eterna verdade vazia e perfeita”. Consumindo sua existência em poucos quilómetros quadrados. Mas quase tocando as estrelas. E viveu, também, um novo tempo na literatura portuguesa. Com a decadência do saudosismo e os primeiros alvores do modernismo. Em que tudo se podia, e devia, tentar. Pessoa era um pouco de tudo isso. Era tudo isso.
Quem se der ao trabalho de buscá-lo, verá alguém como tantos. Com qualidades e defeitos. Contraditório. Que defendeu a escravatura (“a escravatura é lógica e legítima”) e também disse mal dela (“angústia autoinfligida e vergonha que com o tempo cresce”). Que de Deus falou mal (“os Deuses, não os reis, são os tiranos”) e bem (“Senhor, livra-me de mim”). Que apoiou Salazar (“o homem certo, na hora certa”) e, depois, se rebelou contra esse “tiraninho que não bebe vinho”. Um homem, como atitude íntima, que escolheu ficar com a Alemanha na Primeira Guerra (“a alma portuguesa deve estar com sua irmã, a alma germânica”). Que falou mal do comunismo, das mulheres, de Fátima e de tantos autores, portugueses e estrangeiros. Um homem vaidoso, extremamente vaidoso; mas ao mesmo tempo discreto, extremamente discreto. Que bebia muito mais do que o razoável, tanto que teve crises de delirium tremens, embora com enorme resistência aos sinais exteriores usualmente exibidos pelos bêbados. Que viveu a vida com o permanente pavor de enlouquecer – como a querida, desdentada e louca avó Dionísia.
No passado que passou, tentei compreender as razões pelas quais Pessoa é tão mais querido (e amado) no Brasil, que em Portugal. E pensei em duas explicações possíveis. A primeira moral. É que Pessoa defendeu, publicamente, poetas notoriamente homossexuais – como António Botto ou Raul Leal. Afrontando uma Lisboa conservadora que tinha, quando nasceu, apenas 300 mil almas. A outra razão seria política. Porque, ao apoiar Salazar (em 1928), ganhou a antipatia dos que desejavam mais democracia; e depois, ao se afastar dele, ganhou também a das elites no poder. Só que, hoje, estou convencido de ser outra a razão real.
É que, diferentemente daqui, na terra de Pessoa não apenas há os que vivem para, também uns poucos que vivem dele. Em uma espécie de clube fechado. Mas com grande acesso à mídia. Autores que escrevem como se fossem empregados de comercio, a profissão de Cesário Verde ou Bernardo Soares. Como se fossem contabilistas. Como se fizessem listas de compras no Pingo Doce. É francamente difícil imaginar que alguém leve um livro desses para ler na rede, num fim de semana. Como se fosse um romance. Escrevem livros para ficar nas estantes e serem consultados de vez em quando. Importante, sim. Mas pouco. Falam uns para os outros, não para o povo de Pessoa. E resistem aos que venham de fora, salvo se rezarem por suas cartilhas.
Em princípios do Seiscentos, já Tomé Pinheiro da Veiga, magistrado e poeta (para alguns investigadores, autor da Arte de Furtar – atribuído a Vieira), descreveu como os portugueses viam estrangeiros em sua terra: “Em descobrindo a Portugalete, se nos mostrou uma cara de vilãozinho, encarquilhado… como quem diz isso é meu, não é teu, não me furtem as minhas vinhas”. Seja como for, permitam a um estrangeiro que escolheu Portugal como sua segunda terra, e não quer as vinhas de ninguém, dizer que deveriam escrever com mais paixão. Para honrar o poeta. Esses proprietários de Pessoa tentam esconder o homem, quando o colocam nos altares. Têm raiva de quem disser a verdade. E pensam que, assim, o endeusam. É o contrário. Ao fazer isso, apenas o apagam. Apequenam. Para esses, o poeta seria a própria imagem da perfeição. Alguém sem pecados. Sem defeitos. Enquanto o homem real, aquele feito de carne e osso, não era assim.
Lembro o poema VIII do “Guardador de Rebanhos”, em que Caeiro fala do Deus menino: “No céu era tudo falso…/ O seu pai era duas pessoas – / Um velho chamado José, que era carpinteiro,/ E que não era pai dele;/ E o outro pai era uma pomba estúpida,…/ E sua mãe não tinha amado, antes de o ter./ Não era mulher, era uma mala.” Por tudo, então, se diga que Pessoa está a pedir para ser libertado. Para escapar dessa mala. Que o deixem viver, a ser melhor venerado por todos que somos devotos dele. Do autor e do homem. Ainda é tempo. Esse é Pessoa, como o vejo. Longe do altar em que o prendem, injustamente, seus proprietários. Livre. Majestoso. Eterno.