Há folhas de jornal, cadeiras partidas, maços de tabaco vazios e caixotes espalhados pelo chão. E muita tralha: rádios antigos, guarda-chuvas desfeitos, bonecos, plumas, chapéus, óculos, malas e cabides improvisados cheios de roupa exuberante. Um cenário sujo e caótico, que lembra um qualquer lugar na periferia de uma grande cidade. Aí estão duas prostitutas, Luiza (Flávia Gusmão) e Tísica (Tânia Leonardo), uma velha, Rata (Paula Só), um ladrão, Maneiras (Tiago Barbosa), Pitta da Conceição (Carlos Alves) e um poeta, Gabiru (Martim Pedroso). Seis personagens pobres, sofridas, solitárias e desesperadas, que vivem “aos pontapés e às voltas com a desgraça” desde que nasceram, como diz, às tantas, ‘o ladrão’. No entanto, a peça não apela à piedade do espetador. Partindo do universo literário de Raul Brandão, A Philosophia do Gabiru, de Martim Pedroso, que estará em cena a partir de amanhã, 10, no Teatro Maria Matos, imprime, antes de mais, o “espírito crítico, irónico e o escárnio” presentes naquele autor, como refere o encenador.
O registo trágico-cómico afirma-se, desde logo, na primeira cena da peça, em que Luiza e Tísica falam da vida miserável da velha em tom de gozo, ao mesmo tempo que a mascaram, tornando-a no ‘palhaço’ do grupo. Este jogo de escarnecimento toca a todas as personagens e é através dele que se dão os diálogos e desenrolam as ações da peça. “O escárnio é a estratégia do miserável para se afastar dessa condição”, comenta Martim Pedroso. Já para Nelson Guerreiro, que escreveu o texto a partir de fragmentos de Raul Brandão (do poema Os Pobres e dos três volumes Memórias), a chacota é também “uma maneira de ocupar o tempo, um escape, porque [estas personagens] não têm arte, cinema ou literatura, só têm o outro e enquanto o gozam, estão ocupados”.
Mas à medida que a peça avança, o riso e a paródia dão lugar à tristeza e ao silêncio. As máscaras vão caindo e este “circo de desgraças e lamentações”, como define Martim Pedroso, transforma-se num espaço de reflexão sobre o sentido da vida e do sonho. E é então que emerge a voz do filósofo Gabiru que esteve, até aqui, calado a um canto, a observar o ‘espetáculo’ e a escrever. “Esta personagem é a própria projeção de Raul Brandão enquanto poeta idealista que produz a partir dessas outras vozes: as vozes da vida”, explica o encenador.
Foi, precisamente, essa atenção e sensibilidade do escritor em relação à miséria que cativou Martim Pedroso. E desse “encontro” surgiu a vontade não de falar da atualidade através dos seus textos, mas antes de refletir sobre “o que, efetivamente, nos dizem”. O texto d’A Philosophia de Gabiru tornou-se, assim, num corpo vivo, trabalhado a partir do impacto que a escrita de Raul Brandão provocou nele, em Nelson Guerreiro e nos atores. De resto, a peça interpela também o espetador: as personagens estabelecem um contacto visual permanente com o público, lançando-nos olhares ora de desdém, ora de revolta, ora de compaixão. Afinal, o que o medo, a morte, a solidão e a miséria têm a ver connosco? Para Martim Pedroso e Nelson Guerreiro, A Philosophia do Gabiru é “um simulacro dessa adversidade que nos assola todos os dias”.