Não conseguimos distinguir personalidade de personagem, biografia de ficção, privado de público. Nem é esse o propósito da peça Dentro das Palavras, que Rui Catalão apresenta no Teatro Maria Matos (TMM), em Lisboa, a 2 e 3 de março. Integrado no tema trimestral do TMM, “Biografia”, o trabalho tem como ponto de partida, precisamente, o jogo entre a palavra inglesa character, que significa ‘personalidade’ e ‘personagem’, e a portuguesa caráter, que só abrange aquele primeiro sentido. “Na nossa língua criamos uma ideia de ‘verdade’ em relação à personalidade, enquanto os ingleses criam uma de ‘dinâmica’, ou seja, de que importa construir traços de identidade com os quais nos definimos face à sociedade, e vice-versa”, explica o autor e intérprete da peça. É, de resto, essa ambiguidade que lhe interessa explorar.
Dentro das Palavras não tem um texto fixo. Rui Catalão constrói uma teia de narrativas a partir de 4 “parâmetros” concretos, onde a memória desempenha um papel ativo, criativo e permanente. “O que faz a identidade da peça é a forma como me relaciono com os temas e as histórias que vou encontrar na minha memória, ativadas pela relação que tenho comigo e com o público”, sublinha.
Rui Catalão é, assim, “um corpo dentro das palavras, à procura de si próprio”, o que se prende com o próprio tema da peça. É a história de uma depressão nervosa, pela qual passou, e “a forma como isso desmonta o sentido de identidade, pertença e lugar”. Num primeiro momento, o discurso alicerça-se no episódio “O Livro de Isabel Pina”, e na ideia desse livro como ativador de memórias ligadas àquela que foi a primeira pessoa que conheceu a escrever um livro; num segundo, em “A Dança de São Vito”, parte-se da analogia entre essa doença do século XVIII e uma crise nervosa, relacionada com quem está sujeito a uma actividade intelectual intensa; num terceiro, “O Papel”, dá-se um jogo de significados entre a folha de papel, ligada ao ato da escrita, e os papéis que representamos; por fim, com o episódio “A Areia da Caparica”, a personagem autobiográfica de Rui Catalão regressa não só à praia da sua infância, como também à casa onde passou o inverno durante a depressão, e ainda à peça que originou esta (Follow that Summer; Centro Nacional de Dança de Bucareste, 2008).
Rui Catalão foi jornalista e crítico do Público e, embora atualmente também escreva textos jornalísticos, a sua atividade profissional tem-se centrado, desde 2005, em trabalhos de dança e teatro.