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As últimas décadas trouxeram progressos à situação da pobreza mundial – há, segundo as estatísticas do Banco Mundial, menos 60% de pessoas expostas a situações extremas em relação a há cerca de 30 anos. Mas o panorama continua a ser cinzento, as soluções são difíceis e vai demorar tempo – muito tempo – até se conseguir controlar e erradicar o fenómeno, agravado pelos efeitos demográficos e pelas alterações climáticas.
O diagnóstico exigente foi traçado por três prémios Nobel no painel “Pobreza global – o maior crime contra a humanidade?”, esta quarta-feira de manhã nas Conferências do Estoril 2019. Que também deixaram receitas: reforçar as democracias, dar poder à política, combater a corrupção, agir a nível local para criar empregos.
“Não é um bom momento para falar de humanidade”
A voz menos otimista que se ouviu na sala da Nova SBE, em Carcavelos – onde estão a decorrer os três dias das conferências – veio do fundador dos Médicos Sem Fronteiras (organização criada em 1971) e mais tarde dos Médicos do Mundo, Bernard Kouchner, que se mostrou desde logo muito crítico da atitude da generalidade dos cidadãos e dos governos europeus em relação aos refugiados que morrem no Mediterrâneo, às vítimas da guerra na Síria ou à situação da minoria roinghya no Myanmar ou da etnia iazidi.
“Não é um bom momento para falar de humanidade, de todo. (…) Vimos migrantes a morrer no mar. Fizemos algo? Não, deixámo-los morrer, embora alguns países tenham feito esforços. Mas é isto humanidade?” questionou. Para o co-fundador dos Médicos Sem Fronteiras, a organização laureada como prémio Nobel da Paz de 1999, a filantropia pode ser importante para combater a pobreza e a ideia de distribuir por todos um rendimento básico universal “muito complicada” de executar. Mas, perante o que chamou de bloqueio nos países ricos, a solução para maior equilíbrio no rendimento continua a ser política. “Temos de inventar outra coisa mais, não apenas caridade ou partilhar dinheiro. Acredito na política, de uma forma democrática”.
E não basta vontade, é preciso tempo, avisou: “Fui toda a minha vida a favor dos pobres. E então? Eles ainda são pobres!” disse, recordando que nem a sua experiência enquanto governante (em 2007 chegou a ministro dos Negócios Estrangeiros de França, no governo de François Fillon) permitiu debelar todos os problemas. “Quando cheguei a ministro fiquei muito orgulhoso, ia mudar o mundo… É preciso tempo, dar tempo ao tempo. Tornar isto em algo aceitável demora uma ou duas gerações,” assumiu.
Corrupção, um “crime contra a humanidade”
Esta passagem consecutiva de testemunho de pais para filhos como forma de melhorar o nível de vida das comunidades também marcou a intervenção da ativista guatemalteca Rigoberta Menchú Tum. “Acredito que depois de uma geração insensível deve vir uma nova sensível, próxima, humana e com sentimento,” afirmou, elogiando as mulheres que alcançaram espaços políticos, de trabalho, de pensamento e pedindo-lhes “objetivo e consciência plena” na sua ação.
Com baterias apontadas ao racismo, às fobias e à ineficaz aplicação da justiça, a também prémio Nobel da Paz em 1992 guardou a maior crítica para a corrupção e a impunidade, que classificou de “crimes contra a humanidade.” E, aproveitando o facto de estar a falar numa instituição académica, deixou a perplexidade: “Não sei o que aconteceu à universidade. Mas a maior parte dos corruptos do nosso tempo são doutorados, têm mestrados”.
O combate aos fenómenos de corrupção como forma de ajudar a travar a pobreza já tinha sido sublinhado por Daniel Traça no arranque da discussão, a par do empowerment das mulheres ou das políticas sociais públicas. O dean da Nova SBE identificou a criação de emprego como o principal desafio, e sublinhou também o papel da iniciativa privada e das parcerias com o Estado, bancos e ONG.
Rendimento universal? “Quão desastroso seria?”
Com uma intervenção mais focada no funcionamento das economias, Edmund Phelps, o norte-americano que recebeu o prémio de Ciências Económicas em Memória de Alfred Nobel em 2006, admitiu a necessidade de reformas consideráveis do capitalismo, mas defendeu que não se deve colocar o peso na tributação de lucros em quem gera inovação e emprego. “Tirar a esses [empreendedores] é fazê-los perder o incentivo pecuniário que têm quando lançam uma empresa,” advogou, alertando ainda que os EUA e a Europa podem estar muito próximos do limite máximo de receitas fiscais que é possível arrecadar.
O economista foi também crítico de soluções como a distribuição de património dos ricos pelos pobres – entende que teriam apenas efeito pontual, – e da ideia de um rendimento básico universal, que, argumentou, desligaria o ser humano do conceito de trabalho. “Quão desastroso para sociedade seria se pessoas fossem seduzidas para depender desse rendimento, pais e mães a mostrarem aos seus filhos que esta é uma forma natural de viver, sem experiência de trabalho ou independência financeira? Não queremos ir nessa direção,” disse.