A repressão, em Díli, é visível a olho nu. Centenas de militares e membros da polícia política patrulham e vigiam a cidade durante a noite, os timorenses dizem que até as paredes têm ouvidos e sentem-se estrangeiros na sua própria terra, ocupada pelos indonésios. No entanto não baixam os braços, a fé católica ajuda a manter a esperança e a alimentar a resistência. «Estamos em posição de aguentar mais 20 anos de luta. A guerrilha é o seu símbolo, mas a vitória tem de ser diplomática», disse à VISÃO Francisco Timóteo, dirigente da Frente Clandestina
Os indonésios são uns assassinos», sussurra, em português, M., uma jovem timorense de 20 anos. A conversa desenrola –se no fim da tarde de segunda–feira, 14 de Outubro, numa das muitas ruas mal iluminadas de Díli, enquanto centenas e centenas de militares e polícias se preparam para iniciar a ronda diária de controlo — sempre ao cair da noite.
Três dias depois do anúncio do Prémio Nobel da Paz a D. Ximenes Belo e Ramos-Horta, e na véspera da visita do presidente Suharto ao território, o ambiente vivido na capital de Timor–Leste é de grande, embora contida, tensão.
Se pudessem, muitos jovens, como M., sairiam pela cidade a gritar o que lhes está gravado na alma e sufocado na voz. Porém, a forte presença de soldados, estrategicamente colocados em todas as esquinas (alguns em postos de vigia), e a notícia de várias acções de busca em todo o território, faz refrear os seus impulsos. Dentro da casa onde mora num bairro pobre de Díli, com cerca de dez irmãos, M. não se sente ainda à vontade para falar. O pai, um ex–funcionário público, que à cautela tem as fotos do Papa e de Suharto, lado a lado, na sala — tal como é costume entre a população —, explica: «Aqui até as paredes têm ouvidos.»
Apesar de viver sob este regime que a amordaça há já 21 anos, aquela família, à semelhança de tantas outras em Timor, agarra-se à fé em Nossa Senhora e alimenta a esperança de um dia viver em liberdade numa terra livre.
«Se tivéssemos armas, poderíamos mobilizar todo o povo timorense», diz-nos, convicto, Francisco Timóteo, 43 anos, vice–secretário do Comité Executivo de Luta da Frente Clandestina (CEL/FC), sentado nas traseiras de uma habitação degradada noutra ponta da cidade.
MAIS 20 ANOS DE LUTA
Os ponteiros do relógio aproximam–se já das sete da noite, altura em que todos os dias, religiosamente, milhares de timorenses sintonizam a RDP–Internacional. Francisco Timóteo mantém-se silencioso por alguns minutos, para melhor ouvir a emissão, transmitida em português e em té- turn (o dialecto de Timor). Retoma o fôlego e volta a disparar: «Estamos em posição de aguentar mais 20 anos de luta.» Aquele ex-militar, hoje dedicado em exclusivo à causa da libertação, admite que a resistência armada no território tem estado na defensiva mas não está morta, como divulgaram alguns jornais portugueses. «A guerrilha é o símbolo do nosso combate. Mas a vitória tem que ser diplomática.»
As centenas de guerrilheiros espalhados pelas montanhas da ilha e agrupados por unidades têm sobrevivido graças à ajuda das populações locais. Aliás, como aconteceu com Xanana Gusmão, o lutador que as pessoas não esquecem e continuam a considerar «o seu eterno herói».
Nos últimos tempos, as numerosas grutas naturais servem-lhes de abrigo. Além da escassez de material bélico — em parte capturado aos inimigos —, um dos problemas principais dos «heróis do mato» é a quantidade de crianças nascidas desde 1990 e que urge enviar para sítios mais seguros. «Sei de 40 miúdos nesta situação. Está-se a tentar colocá-los em orfanatos ou arranjar famílias de acolhimento nas cidades», conta um padre católico que conheceu alguns jovens de 20 anos que nunca puseram os pés numa vila. «Estes rapazes aprenderam a ler e a escrever no mato com livros antigos da escola portuguesa e receberam uma formação humana e política através dos ensinamentos dos combatentes mais velhos.»
Este padre, que faz parte do grupo que acompanha de perto o movimento da resistência maubere, tem bem viva na memória o massacre do cemitério de Santa Cruz, em 1991. Hoje, na escuridão, as campas apenas são iluminadas pelas velas acesas por familiares dos muitos mártires da terra.
A partir das oito da noite, a agitada circulação automóvel, composta sobretudo por velhas carrinhas azuis transformadas em táxis, jipes e motoretas, pára e dá lugar aos veículos dos militares e da polícia política, a chamada Inteligência — cujos agentes, ao serviço do regime indonésio foram apelidados pelos timorenses de mouhu, palavra que em tétum significa aqueles que assopram.
RIOS DE ESGOTOS
Às seis da manhã de terça-feira, dia 15, o sol brilha e aquece a cidade plantada entre montes e mar. Circulando pela avenida marginal, em direcção à estátua de Nossa Senhora, ouve-se um grupo de pessoas a recitar, em tétum, rezas e cânticos religiosos. O som vem da capela da residência do bispo, D. Ximenes Belo, onde, cerca de quatro horas antes da visita de Suharto, parece reinar uma perfeita comunhão entre Deus e o povo crente de Timor. Mais à frente, na praia, vários miúdos nus ou seminus brincam na sujeira da água e da areia, onde também se passeiam alguns porcos selvagens (há destes animais por toda a cidade) e pequenos búfalos. Alheios ao grande acontecimento do dia, as crianças fazem questão de posar para a fotografia, algumas exibindo o sinal da vitória com as mãos. Não falam português, mas sabem dizer com orgulho o nome do território ocupado: Timor–Leste!
A praia da Areia Branca, a cerca de cinco quilómetros do centro de Díli e muito próxima do Cristo-Rei, monumento vedado à visita dos locais até à inauguração oficial pelo presidente indonésio, está deserta nesse dia. E aos domingos que as famílias da capital se reúnem e animam o modesto areal, onde há bancos, casas de banho e mesas construídos em cimento e já bastante deteriorados.
Caminhando em direcção ao interior da cidade, onde não existem prédios, apenas casas modestas e muitas abarracadas, começa a sentir-se um cheiro nauseabundo, misturado com o odor de frutas tropicais. Uma observação mais atenta leva os olhos às valas de esgotos que se espalham por todo o aglomerado de habitações e, em alguns locais, se misturam a rios e ribeiros, num monte de lixo.
Em Díli, o saneamento básico construído pelos portugueses, no tempo em que aqui moravam cerca de 25 mil pessoas, rebentou pelas costuras. Hoje, a cidade conta com mais de 115 mil residentes e nem os esgotos nem o tratamento da água canalizada constituem prioridade para os ocupantes.
Este deve ser um dos factores que levam à proliferação das doenças mais comuns — e em muitos casos, mortais — no território: malária, tuberculose e cólera.
GRANDE DIA
Um pouco por toda a cidade, nesta manhã de dia 15, finalizam–se os preparativos para a visita do autodenominado «pai da integração», tal como o presidente indonésio, Suharto figura nos cartazes colocados ao pé do palácio do governador. O comércio encerra, o trânsito do aeroporto para o centro de Díli é cortado e os operários ainda trabalham em ritmo acelerado para acabar a estrada que será baptizada com o nome da mulher do ditador, Ibu Tien.
Pouco antes das nove horas começam a chegar os camiões e os autocarros improvisados, com «timorenses do campo» para assistir à festa. Dizem os locais, no entanto, que muitos são soldados à paisana e «transmigrados» — cidadãos que imigraram nos últimos cinco anos de outras partes da Indonésia, tais como Java, Sumatra, Sulawesi ou Bali.
Os postos de electricidade estão já todos enfeitados com pendões coloridos e bandeiras vermelhas e brancas. O som das cabinas instaladas na praça do palácio de Abílio Osório, o governador do território, é testado; o hino nacional indonésio e o discurso do presidente têm de ser escutados pelo maior público possível.
Com os ouvidos colados ao transístor, os padres instalados na diocese de Díli acompanham à distância o grande acontecimento do dia. Crítico, Domingos Soares, 44 anos, pároco de Letefoho, aldeia de onde se avista um dos montes míticos da resistência, protesta: «A inauguração da estátua do Cristo-Rei é um insulto para o nosso povo. Estão a fazer de uma imagem sagrada o cavalo de Tróia da integração, metendo as ideias deles lá dentro e obrigando-nos a recebê-lo só porque é Cristo.»
O monumento inclui, de forma óbvia, vários símbolos do ocupante: a altura do corpo da estátua (17 metros), por exemplo, corresponde à data da integração de Timor-Leste (17 de Julho de 1976) e o peso (50 toneladas) representa os 50 anos da independência indonésia. Ao mesmo tempo que se inicia a cerimónia oficial, algumas dezenas de estudantes, revoltados com mais esta imposição, concentram-se na Universidade de Díli, queimam caixotes de papel e lançam pedras aos militares que por ali passam. No entanto os professores apelam à calma, e a manifestação fica por alí.
Na praça, onde um forte dispositivo de segurança mantém os populares a centenas de metros do palanque presidencial, não se nota qualquer distúrbio. A margem da celebração, vendedores ambulantes oferecem, nos seus carrinhos de mão e em canas apoiadas nos ombros, bebidas e frutos. Terminados os discursos oficiais, em bahasa, língua da Indonésia, as altas personalidades, incluindo Suharto e D. Ximenes Belo, partem para o voo de helicóptero até à polémica estátua.
TÍPICO E REPRIMIDO
A sombra de uma das muitas árvores que brotam à beira da praia, um grupo de dança e música típicas descansa. Os seus elementos dispõem-se a ser fotografados, mas temem falar em português. E justificam-se: é grande o número de polícias entre os populares. Um senhor dos seus 70 anos arrisca e faz questão de dizer que, na sua aldeia, entre os familiares e amigos da mesma idade, só ele sobreviveu. Os outros? «Desapareceram».
Relatos — ainda que feitos de forma sigilosa — sobre a repressão, que continua a grassar no território, multiplicam-se. No início deste mês, mais de cem pessoas da povoação de Atsabe (no interior, entre as cidades de Ainaro e Maliana) foram capturadas por serem suspeitas de ajudarem os guerrilheiros com roupas, medicamentos e comida. Em Setembro, 18 jovens foram presos na área de Baucau e Waitame (a leste) depois de participarem numa manifestação contra a construção de uma mesquita. Sabe-se que três das raparigas detidas foram violadas na cadeia. Em Ossu (no interior leste), há menos de um mês foram assassinados a tiro dois timorenses, um homem de 54 anos e o sobrinho de 23, porque constavam da «lista negra», como os colaboradores da guerrilha. Desconfiavam que eles davam abrigo a combatentes.
Em meados de Julho, na cidade de Ermera, na sequência do fogo posto no mercado, os militares prenderam seis rapazes e apenas libertaram quatro. Ildefonso de Deus dos Santos, de 19 anos, filho do vogal da Assembleia Legislativa local, e Abílio, 20, espancado e torturado com choques eléctricos, continuam desaparecidos.
«Muitos jovens saem das mãos dos militares com lesões físicas irreparáveis», exclama o padre Domingos Soares. À repressão, nem os religiosos escapam: também eles são interrogados. As torturas aplicadas às mulheres não são menos requintadas: uma das detidas na operação de captura de Xanana Gusmão, em 1992, sofreu choques eléctricos e introduziram-lhe a cabeça de uma jibóia na vagina.
«Em Díli há moradias que na realidade servem para os militares interrogarem e torturarem as pessoas. Estas casas funcionam de forma rotativa, sendo muito difícil para a Cruz Vermelha ou outras instituições descobrirem o paradeiro dos detidos», conta à VISÃO P., 40 anos, que esteve presa já por duas vezes e foi torturada com queimaduras de cigarros no corpo. Sentada serenamente no sofá de uma casa em Díli, descreve que naqueles sítios os capturados dormem no chão e comem muito mal. Em apenas um mês, ela emagreceu dez quilos.
Apesar da violência vivida nestes 21 anos de ocupação — além de presa e torturada perdeu o marido em 1976 —, P. não perde a coragem. «Por causa de tudo o que já passei quero manter-me aqui. O pior já aconteceu.» No seu quotidiano, tenta não dar pretexto ao inimigo para voltar a molestá-la.
VIDA DE SACRIFÍCIOS
A independência não virá de mão beijada. É preciso muito sacrifício», conclui L., 36 anos, mulher de um dos condenados a dez anos de cadeia por participar na manifestação de 12 de Novembro de 1991. Esta mãe de cinco filhos viveu no mato com a guerrilha, durante três anos, e também já esteve detida. Os sofrimentos pelos quais tem passado só a têm endurecido. A conversa nos jardins de uma igreja da capital, depois da visita de Suharto sem deixar transparecer um pingo de emoção, recorda como nos tempos de crise nas montanhas viu abandonar crianças e guerrilheiros feridos. «Apenas continuavam a lutar os mais fortes.»
Quando o marido foi detido, em 1991, L. ficou desesperada: um dos seus miúdos, de apenas cinco anos, sofreu um trauma psicológico inesperado. «Ele dizia que se o pai continuasse preso queria ser crucificado como Cristo.» A criança recuperou, cerca de um ano depois, mas recusava-se a estudar na escola indonésia e a cantar o hino nacional. «Nunca lhes ensinei a vingança, mas sim a aprenderem a identificarem-se com o povo timorense.» Nenhum dos seus miúdos participa em manifestações. L. quer protegê-los. No entanto, se pudesse, ela própria voltaria a participar activamente no movimento da resistência. «Já estou marcada», lamenta a mulher que sustenta a família sozinha e visita o marido, na ilha de Java, duas vezes por ano, com a ajuda da Cruz Vermelha Internacional.
Conscientes do papel das mulheres na resistência, os indonésios arranjam estratégias para desviá-las. «Em Setembro, 30 raparigas foram levadas ao engano para a prostituição em Bali. Eram, na maioria, familiares de pessoas que participam na vida clandestina», denuncia um padre que pediu anonimato. No interior, segundo alguns testemunhos, será comum violar adolescentes que apoiavam a resistência e transformá-las em amantes dos soldados. Sem sombra de pecado.
ESTUDANTES & RESISTENTES
Um dia depois da visita de Suharto, a 16, Díli regressa à normalidade de uma cidade ocupada por militares: os postos de vigilância são desmantelados — embora o contingente de soldados não diminua —, o comércio e as escolas voltam a funcionar. Ao pé do aeroporto de Comoro, os operários continuam a trabalhar na rotunda que liga à nova estrada inaugurada pelo presidente. O Cristo-Rei, agora aberto ao público, sem qualquer inscrição gravada, recebe poucos visitantes.
Na Universidade de Díli, onde estão inscritos cerca de dois mil estudantes nas áreas de Agronomia, Administração Pública e Ciências Governamentais, Biologia, Matemática, Inglês e Bahasa (estes quatro cursos destinam-se ao magistério), não há sinais da manifestação organizada no dia anterior. Do edifício branco de dois andares, transformado em instituição de ensino superior em 1986 por Mário Carrascalão, saem alguns alunos, que, mais uma vez, ao aperceberem-se da presença de um estrangeiro, fazem o sinal de vitória. O reitor interino, Armindo Maia, 38 anos, recorda-se dos dias em que esteve encurralado nas instalações da universidade. Dessa vez, os soldados não reagiram. «Fiquei em várias ocasiões — nomeadamente quando os jovens organizavam manifestações — trancado aqui, horas a fio, com os estudantes. Em qualquer
caso nunca entregámos os lideres dos movimentos.» Nas salas de aulas, segundo o reitor, a liberdade é «condicionada». O sistema de ensino seguido é o indonésio, tal como nos liceus e escolas primárias, e 75% dos professores são transmigrantes. «A maioria dos docentes não se arrisca a falar de certas coisas. Assumem uma posição conservadora.» E não é por acaso. Eles sabem que o grosso dos jovens ou estão ligados à Organização da Juventude Católica ou fizeram-se elementos da Resistência Nacional dos Estudantes de Timor-Leste (RENETIL). Calcula-se que apenas umas seis ou sete centenas de rapazes e raparigas façam parte de grupos defensores da integração. Também se sabe que um número incerto se movimenta tanto num lado como no outro. Dentro deste conjunto de jovens, alguns foram detidos e ameaçados antes de se passarem para o inimigo. Tal como muitos dos guerrilheiros apanhados nas malhas dos militares, viram-se obrigados a entrar para as suas fileiras. O marido de L., por exemplo, em finais dos anos 70, esteve três meses como «voluntário» nas Forças Armadas indonésias. E hoje, se quisesse, poderia ver a sua condenação atenuada em dez anos: bastava declarar publicamente que aceitava a integração.
PORTUGAL ALI TÃO LONGE
Em Díli, a presença dos portugueses é conservada nos nomes das ruas, nas características de algumas casas, templos católicos e monumentos como aquele que é de 24 de Outubro de 1996 dicado ao quinto centenário da morte do Infante D. Henrique, situado mesmo em frente ao palácio do governador. Em geral, a população citadina com mais de 20 anos sabe falar português mas raramente o pratica. Onde a língua de Camões continua a reinar é nos documentos oficiais da igreja — sempre que necessário são traduzidos para o bahasa e tétum.
Nalguns sítios pode-se comer caldeirada, peixe grelhado e outros pratos (o restaurante Massau, no bairro com o mesmo nome, é um exemplo, além do Hotel Turismo, à beira-mar). O azeite e certas marcas de vinho portugueses também se encontram em lojas locais. Apesar do embargo. O saudosismo do chamado país administrante revela-se na quantidade de equipas de futebol, cujos ídolos continuam a ser os jogadores lusos, e de grupos folclóricos à moda portuguesa. Estes chegam mesmo a fazer apresentações em Jakarta.
Porém, o contacto mais directo que os timorenses têm com Portugal é através dos familiares que conseguiram emigrar ou fugir. O telefone é um dos meios que permite a aproximação. No entanto, se os assuntos passam do pessoal para assuntos mais delicados, as escutas, sempre atentas entram em acção. Pelo menos é o que imaginam os cidadãos, volta e meia interrompidos nas suas conversas transcontinentais.
Aqueles que têm dinheiro, e conseguem obter uma licença para comprar uma antena parabólica, podem assistir às emissões da RTP lnternacional. No fundo, o que muitos telespectadores gostariam era que a televisão portuguesa divulgasse mais programas — que à partida terão a garantia de ser isentos — sobre o território. A censura controla quase toda a informação entrada na ilha e, em alguns casos, livros e outras publicações enviados de Portugal, nunca chegam ao seu destino. «No ano passado, 30 volumes do Novo Catecismo Católico, que nos foram enviados de Braga, nunca chegaram cá», exemplifica o padre Domingos Soares.
TURISTA ACIDENTAL
Desde 1989 que Timor-Leste abriu as portas aos turistas. Segundo as estatísticas oficiais da Indonésia, uma média anual de mil pessoas do Sudoeste Asiático, América do Norte, Europa, Japão e sobretudo da Austrália e Nova Zelândia, têm visitado o território.
Os viajantes que querem informação da ilha e se dirigem ao posto de turismo local encontram apenas dois pequenos panfletos em que se fala das suas belezas naturais (as praias, as montanhas e a vegetação farta, com destaque para as palmeiras e os sândalos) e da riqueza histórica. Numa das passagens lê-se: «Os portugueses abandonaram irresponsavelmente Timor-Leste em Agosto de 1975 (…) E, a pedido da maioria dos timorenses, a área foi formalmente integrada na República da Indonésia a 17 de Julho de 1976.»
Aos turistas é dito que a circulação pelo território é livre, apesar de, em algumas localidades, ser necessário apresentar-se ao chefe de «suco», ou representante administrativo, para efeitos de controlo. Em Díli, existem voos diários de e para Jakarta (com escala em algumas cidades do arquipélago indonésio, seja Detìpasar, Surabaya ou Kupang) nas companhias aéreas regionais e há também a possibilidade da ligação por barco a outras ilhas. Para circular dentro do território, no entanto, a escolha limita-se a velhos autocarros ou táxi — não existem comboios.
Na capital, um dos poucos resquícios de animação ocidental é o cinema, que na semana em que ali estivemos passava um filme de Jean-Claude Van Damme e costuma apresentar películas eróticas indonésias, para desagrado dos religiosos católicos. A tradicional luta de galos, proibida pelas autoridades ocupantes, serve, todavia, de entretenimento a muitos timorenses que transferem a violência latente para o espectáculo de penas. Saindo do edifício onde funciona o posto de turismo, cerca de 200 metros adiante, encontra-se uma das principais atracções de Díli: o mercado municipal. Ali, há de tudo à venda, desde comida, roupas, medicamentos, utensílios domésticos a bugigangas em geral. Timorenses de cidades tão longínquas como Baucau, na maioria pequenos produtores, acorrem a este mercado na ânsia de amealharem o ganha-pão diário. Fora das paredes do mercado vende-se carne ao ar livre e costuram-se fatos em máquinas mecânicas. Tudo por míseras rupias.
VIVA TIMOR
«A luta continua». A inscrição foi timidamente pintada num muro que ladeia a famosa Igreja de Motael — onde começou a manifestação de 12 de Novembro – e passou ao controlo dos militares, que apagam tudo o que lhes parece ser de «cariz revolucionário».
Nesta tarde de 16 de Outubro, em Díli parecia reinar a paz, não fora reparar naquele sinal de protesto. Do outro lado do passeio que dá acesso ao templo católico, um grupo de meninas vestidas à moda islâmica sorri. Os muçulmanos, ainda em minoria no território, fazem tudo para expandir a religião de Alá. Algumas timorenses são atraídas por jovens islâmicos, engravidam, casam-se e depois convertem-se.
Outro projecto imposto pelos indonésios é o do controlo da natalidade: a família ideal deve ter apenas dois filhos. Entre a população fala-se de esterilização forçada e de uso compulsivo de métodos contraceptivos. Aqueles que seguirem o programa recebem um prémio pecuniário. Muitos timorenses consideram esta mais uma forma de aniquilá-los.
A notícia do Prémio Nobel da Paz veio reavivar as esperanças de uma população oprimida e que luta por não desaparecer. Mas o entusiasmo, do ponto de vista daqueles que sentem a repressão no dia-a-dia, só pode ser contido. «O Prémio para dois timorenses não é mais do que uma parte da nossa resistência. Com esta nova influência poderemos marchar melhor para a vitória», diz, convicto, Francisco Timóteo, o vice-secretário da Frente Clandestina. Enquanto as Nações Unidas não mostrarem que se importam com o facto de a Indonésia não cumprir as suas resoluções e que se preocupam realmente com a violação dos direitos humanos em Timor — colocando um representante permanente no território para garantir a integridade física dos nativos —, continuará a haver cepticismo. E razões para pegar em armas.