O olhar parece desorientado, tal é a diversidade de pontos de interesse nas ruas por onde passam. De telemóvel em riste, sucedem-se as fotografias às paredes e murais que exibem obras de artistas de arte urbana como Bordalo II, Slap, Astro ou Vhils. “I’m blown away!” (estou impressionada!), exclama Linda Silvius, 70 anos, enquanto se apoia discretamente na bengala. A californiana está de passagem por Lisboa, trazida por um cruzeiro. A neta tinha-a avisado de que não poderia perder a “galeria a céu aberto” existente às portas da cidade, no bairro da Quinta do Mocho, em Loures. Jackie McLury, a amiga, também septuagenária, que a acompanha no cruzeiro, concordou em deixar o grupo para trás – em busca de souvenirs e outras experiências very typical – e agendar uma visita guiada ao bairro.
O Mocho chegou ao mundo. Há um par de anos, quais seriam as possibilidades de encontrar duas turistas norte-americanas a fotografarem o bairro descontraidamente? Nulas, arriscamos. A criação da Galeria de Arte Pública da Quinta do Mocho teve como ponto de viragem o festival O Bairro i o Mundo, que há dois anos convidou os primeiros artistas a intervirem nas paredes do Mocho. O sucesso da iniciativa levou a autarquia a expandir a arte urbana existente no município através da iniciativa Loures Arte Pública, que levou uma centena de artistas a diversos bairros da cidade na semana passada. Agora, há cerca de cem as obras para conhecer no concelho.
“Quebrámos a redoma que nos envolvia e o bairro deixou de ser cinzento”, sintetiza José Ribeiro, 36 anos, conhecido na vizinhança como Kally. Residente no Mocho, é um dos quatro guias voluntários que coordena as visitas gratuitas promovidas pela Câmara de Loures (no último sábado do mês), mas há outras instituições e empresas que levam turistas diariamente ao bairro para verem a meia centena de obras lá existentes. Orgulhoso, Kally assegura que conta com uma média de cem pessoas nas suas visitas, mas já chegaram a ser 150 de uma vez. Passaram pelo Mocho artistas de várias partes do globo: Espanha, México, Turquia e Israel são alguns dos países representados. No caso do francês Steven Swedile, que assina como Stew, foi o conterrâneo Astro quem lhe falou da “magia” do Mocho, da qual muitos artistas querem fazer parte.
Gringos no bairro
“Antigamente, se pesquisasse na internet por Quinta do Mocho só apareciam desgraças. Hoje, aparece a maior galeria de arte urbana a céu aberto da Europa”, afirma, com satisfação, a vereadora de Ação Social, Educação e Habitação de Loures, Maria Eugénia Coelho, 57 anos. As “desgraças” referiam-se, provavelmente, a histórias de crime, tráfico de droga e violência. “Os jovens não diziam que eram do Mocho para não serem discriminados nas entrevistas de emprego”, recorda a autarca. Uma das obras mais emblemáticas, da autoria do português Nomen, mostra uma mulher de origem africana a tirar uma máscara de pele branca, numa analogia à marginalização sofrida pelos residentes. Hoje, já não é assim. “Sentimo-nos valorizados. Ao princípio parecia que as pessoas vinham ao zoo ver os africanos, mas depois a mentalidade mudou”, assegura Kally. “E antes, com a má fama que tínhamos, ninguém queria cá vir”, acrescenta, confessando que agora sonha criar um negócio associado à arte urbana para “agarrar” os jovens do bairro. Essa é uma das preocupações de Elsa Santos, 41 anos, proprietária de um dos cafés mais frequentados do Mocho: “Não pode ser só pinturas, tem de haver mais atividades para os jovens do bairro estarem ocupados e não se deixarem levar pelos bandidos”, reivindica, apesar de já estar conquistada: “Agora recebemos mais pessoas do que muitos museus. Trazer os gringos cá para dentro é uma boa ajuda para limpar a imagem do bairro”.
Quando abre a janela de casa e vê a rua cheia de turistas, Adriano Pedro, 50 anos, enche-se de orgulho. “Nunca pensei que isto fosse possível no meu bairro”, confessa o ex-assistente da Embaixada de Angola em Portugal, que conhece o Mocho desde que chegou de Luanda, em 1989, com 23 anos, para estudar na Faculdade de Letras. Foi no final dos anos 80 que muitas famílias vindas de países como Angola, Moçambique, Guiné, S. Tomé e Cabo Verde ocuparam três torres de habitação inacabadas nesta zona de Sacavém. O realojamento para o bairro atual só aconteceu no início da década de 2000. Hoje, contam-se cerca de 2700 residentes. É esta história que Adriano Pedro vai contar no livro que está a escrever sobre o Mocho. “O bairro agora é uma obra de arte e isso engrandece-nos”, afirma, enquanto observa uma das novas pinturas que ali está a nascer. Adriano Pedro gostava que os jovens do bairro estivessem mais envolvidos nos projetos da galeria urbana e, sobretudo, queria ver mais desenhos representativos da cultura africana. “Já andei pelo mundo fora, mas o meu coração esteve sempre aqui. O meu bairro é o meu mundo”, declara, com um sorriso terno.
Maria Carvalho, 56 anos, também conhece bem a história do bairro onde vive há duas décadas, altura em que trocou S. Tomé por Portugal. As “pinturas deixaram-no mais bonito”, mas o melhor foi o bairro ter ficado mais calmo depois da partida – e da detenção – de alguns dos que “tinham o diabo no corpo”, conta. Uma grande conquista foi a chegada de transportes públicos ao bairro. “Não vinham cá porque eram agredidos”, explica. “Agora temos o autocarro 300 [da Rodoviária de Lisboa], mas só começa por volta das sete da manhã e há muitas mulheres que saem às cinco para limpar os escritórios em Lisboa”, lamenta Maria Carvalho, que conhece bem essa rotina. Também vários autocarros foram alvo da intervenção de artistas.
A arte de mudar
Frederico Soares Campos, 27 anos, Draw no meio artístico, não duvida do poder da arte urbana para quebrar estigmas, desde que não se resuma a “fachadismo”. “A intervenção no Mocho deu mesmo a conhecer o bairro ao mundo e fez as pessoas sentirem-se incluídas”, constata o artista, dos primeiros a deixar a sua marca no local. Recentemente, interveio também no Padre Cruz, em Lisboa, conhecido como o maior bairro social da Península Ibérica (onde vivem 8 mil pessoas), no âmbito do Muro – Festival de Arte Urbana. “A arte é um pretexto para as pessoas terem curiosidade de entrarem no Padre Cruz”, acredita Paulo Quaresma, 43 anos, coordenador do projeto Criar Mudança Através da Arte Urbana, que além de levar artistas ao bairro pretende formar jovens guias para garantirem as visitas (essenciais à sustentabilidade do projeto).
Apesar do apoio logístico e ajudas de custo, a mão de obra dos artistas é voluntária. O dinheiro está longe de ser a motivação de quem pinta. “Deixar alguma coisa minha aos moradores e ver no olhar das pessoas as sensações que consigo criar é importante para mim”, explica o brasileiro Utopia (Oliveiros Júnior de nome), 32 anos, que na semana passada pintou uma das paredes de 18 metros de altura do Padre Cruz. Lara Seixo Rodrigues, 37 anos, produtora de eventos de arte urbana, como o Muraliza – Festival de Arte Mural de Cascais (terminou a 5 de julho), considera que a mais-valia deste tipo de projetos é o envolvimento com a comunidade.
“Explicamos sempre aos artistas o contexto em que vão trabalhar e incluímos os residentes no processo. Só assim é que o poder transformador da arte acontece”, defende. Exemplo: no Bairro dos Pescadores, em Cascais, um dos locais de intervenção do Muraliza, os residentes emprestaram fotografias antigas aos artistas para os inspirarem. “As pessoas vão ver os murais todos os dias, é importante que exista alguma ligação emocional”, conclui. Inês Machado, 37 anos, da equipa do Gabinete de Arte Urbana da autarquia de Lisboa, destaca o papel deste tipo de arte “na promoção do diálogo” e “atenuação de tensões sociais”, contribuindo para o “sentimento de pertença ao bairro”.
“Agora toda a gente quer vir ver as nossas paredes”, garante Ivan Andrade, 17 anos, que cresceu no Padre Cruz. “As pessoas falam muito do bairro sem o conhecerem. Ouvem dizer que é mau e já nem se preocupam em saber se é mesmo verdade”, lamenta. Se há algo que lhe agrada no Padre Cruz é, precisamente, a vida de bairro: “Toda a gente se conhece e em quase todos os sítios dá para pagar no dia seguinte. Quando o meu avô sai à rua cumprimenta umas 500 pessoas!”, brinca. Já os novos visitantes serão saudados à chegada pela palavra pintada pelo artista MaisMenos numa das entradas do bairro: “Aplausos”.

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