Os noticiários usam-na diariamente e os escritores ajudam a dar-lhe sentido. Mas, ironicamente, poucos autores dão à morte o lugar central da obra.
E se fossemos imortais? Nem tudo seria bom, lembrou o escritor Afonso Cruz durante a sexta tertúlia Jornalismo&Literatura, dedicada ao tema Vida e morte. Nos jornais e nos livros.
“Quando as células se misturam pode nascer um Hitler ou um Gandhi”, alerta o escritor. Mesmo assim, “andamos há séculos a tentar enganar a morte”. Para a criação, a possibilidade de “matar a morte” é tão atractiva como a própria finitude.
E um tema assim não poderia escapar aos escritores. Tal como não escapa aos repórteres. Susana Moreira Marques, jornalista e autora do livro Agora e na Hora da Vossa Morte, acompanhou várias famílias e profissionais de cuidados continuados. Com todos eles aprendeu que “a morte tem uma dimensão prática avassaladora”. Aliás, concluiu a jornalista, “tem pouco de literária”.
Talvez porque o desejo de sobrevivência dos que rodeiam os doentes se sobreponha a tudo o resto, como Tolstoi descreveu em A morte de Ivan Ilich. Afinal, ver os outros definhar é sempre a lembrança de que estamos vivos. “Perante a morte, queremos ter vida. E isso tem sido um motor de toda a literatura, embora raramente seja o tema principal”.
Depois de Afonso Cruz dizer que “as mortes não são todas iguais”, Alice Trindade, vice-presidente do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) e membro da Associação Internacional de Estudos de Jornalismo Literário, lembrou que a literatura reflecte a cultura de um país. “Uma comunidade guineense tem uma tradição chamada fazer a mala: quando um corpo não pode ser trasladado, juntam-se objectos do falecido numa mala e envia-se para o país de origem, como forma de devolver o espírito à terra natal.” Para a investigadora, tradições como esta significam que “a morte é um tema universal para a literatura e o jornalismo, mas tratado localmente”.
Mas o fim da vida está longe de ser apenas fonte de emoções inspiradoras. Muitas vezes é um facto político que abala governos. Fenómeno noticiável, pode ser visto como “falhanço do poder político, como quando decorre de ataques terroristas”.
E é desta tensão que vivem as histórias. Um elemento tão importante na literatura que leva Afonso Cruz a ironizar sobre a facilidade com que “mata” os seus personagens: “Tenho um assassino dentro de mim, só não o deixo sair à noite”.
Fácil para a literatura, difícil para o jornalismo numa época, diz Susana Moreira Marques, “de recusa da morte”. Fenómeno biológico, precisa tanto da literatura, como do jornalismo para lhe dar sentido. Isso mesmo concluíram os participantes da tertúlia organizada pelo Clepul (Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias), núcleo de Jornalismo e Literatura da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e apoio da revista VISÃO.