Quando o tema é a habitação, ou a falta dela (principalmente em Lisboa), dificilmente se extravasa muito do que é sistematicamente repetido – existe um problema crónico de lentidão nos licenciamentos (aparentemente difícil de alterar), os estrangeiros, leia-se, vistos Gold, estão a provocar uma subida astronómica dos preços das casas e o Alojamento Local deve ser refreado para que mais habitações entrem no mercado de arrendamento.
Mas o papel do Estado (incluindo autarquias) quer como legislador, quer como proprietário, tem mais que se lhe diga e os operadores do mercado começam a exigir mais. Numa conferência concorrida organizada pela Century21 Portugal sobre as tendências do mercado imobiliário em 2023 e que reuniu autarcas, banca e promotores, foram vários os oradores que lembraram que restringir, sufocar ou mesmo eliminar a iniciativa privada na habitação, acabará por constituir um risco demasiado elevado para um país pobre como é Portugal.
“Todo o crescimento económico é bom, o turismo sustentável é bom, tudo o que traga capital para a economia é positivo e o setor imobiliário tem provas dadas nessa matéria. Por isso porquê mexer no que está bem?”, questionava Pedro Reis, ex-presidente da AICEP (Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal).
Lembrando que medidas como a previsível eliminação dos vistos Gold poderão ser contraproducentes dado o impacto negativo expectável na economia, Pedro Reis questionou ainda porque razão o Estado não concentra os seus esforços em dar bom uso aos milhares de imóveis devolutos que possui. “Estamos a falar de 10 mil imóveis públicos devolutos…”, lembrou o gestor, sublinhando que é preciso mais responsabilização estatal e “menos medidas populistas assentes na demonização do setor privado”. Para Pedro Reis, “essas medidas, aliás, acabarão por ser tiros nos pés para não dizer na cabeça”, ironizou ainda.
Mas não só. Do lado do Estado recai também a obrigação de avançar com celeridade para a execução da famosa ‘bazuca’ de milhões de euros do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e a partilha dos seus planos para o não desperdício dessas verbas… Isto numa altura em que há uma escassez brutal de mão-de-obra no setor da construção, com riscos de se tornar ainda mais escassa à medida que os outros países da União Europeia começarão a executar os seus próprios PRRs, disputando assim a mão-de-obra existente no mercado europeu.
Do lado da banca, Nuno Carvalho Martins, administrador da Caixa Geral de Depósitos (CGD) veio lembrar que apesar dos mediáticos avisos sobre a subida das taxas de juro e do seu impacto no orçamento das famílias, esta afeta um número mais contido de clientes da CGD: “A subida das Euribor afeta as pessoas que contraíram empréstimos há pouco tempo e no nosso caso estamos a falar de um grupo de cerca de 30% de quem pede empréstimo à habitação”.
O resgate do modelo bem sucedido do crédito bonificado de outros tempos, popularmente conhecido como crédito jovem, foi uma ideia defendida por Eduardo Vítor Rodrigues, presidente do Conselho Metropolitano do Porto. “O crédito bonificado acabou por um dogma ideológico de que Portugal tinha proprietários a mais, mas a verdade é que um choque fiscal desta natureza ou a redução do IRS para os jovens teria mais impacto do que medidas como a isenção do IMT, por exemplo”, sublinhou o autarca, que preside também à câmara municipal de Vila Nova de Gaia.
Por parte dos responsáveis da banca, desta vez, numa intervenção de Francisco Bandeira, administrador do BPI, ficou outra sugestão – importada com sucesso de outros países europeus, EUA e Japão – para trazer mais imóveis para o mercado, minimizando assim a falta de stock habitacional – a chamada hipoteca reversa.
Ou seja, ao contrário do habitual em que os bancos concedem o empréstimo e, como segurança do reembolso do valor emprestado, ficam com o imóvel hipotecado a seu favor, na hipoteca reversa o banco empresta ao proprietário já senior um determinado montante como complemento de reforma, com prestações mensais. Isto acaba por ter vantagens nas situações em que os seniores possuem património mas não têm forma de o transformar em liquidez.
60% dos portugueses são classe média
O congresso contou também com a apresentação do estudo da Century21 Portugal que a Visão já teve oportunidade de divulgar recentemente. O trabalho veio confirmar o agravamento da acessibilidade dos portugueses à habitação e a inadequação da oferta existente de imóveis, ajustados ao nível de rendimento das famílias nacionais, como fez questão de sublinhar Ricardo Sousa, CEO da Century21 Portugal.
Considerando os diferentes escalões de rendimento, o estudo que cruzou dados do INE e da Confidencial Imobiliário apurou, por exemplo, que do total dos agregados familiares portugueses, 60% integra-se na classe média – escalões 2, 3 e 4 do IRS – para a qual se aconselha a aquisição de uma habitação até 190 000 mil euros, cumprindo a taxa de esforço de 1/3 do rendimento disponível.
Contudo, a oferta de habitações nesse nível de preço representa apenas 42% do total, o que demonstra claramente a insuficiente resposta de soluções habitacionais para as necessidades deste segmento da população. Este desequilíbrio é igualmente patente, de modo inverso, nas habitações de valor superior a 330.000€, que representam 32% da oferta, quando apenas 11% das famílias se inserem num escalão de rendimento com essa capacidade aquisitiva. E o cenário nacional é até um dos mais favoráveis, em contraste com as áreas metropolitanas e respetivas capitais.
O estudo mostra também que 11% das famílias nacionais auferem um rendimento anual inferior a 5 000 euros, o que significa que apenas terão condições de acesso a habitação social.
Numa análise mais direcionada, apurou-se que na Área Metropolitana de Lisboa, 55% das famílias inserem-se na classe média, ao passo que apenas 33% da oferta se adequa ao nível de rendimento dessa classe. Na Área Metropolitana do Porto, a classe média agrega 61% das famílias, que dispõem apenas de 41% da oferta de imóveis nesse nível de rendimento, novamente, com uma grande parte dos imóveis para venda (28%) a direcionar-se para o público com maior capacidade financeira, mas que representa a menor fatia dos agregados familiares (11%).