Cumpriram a sua função no local onde se inserem, mudaram vidas, movimentaram a economia. Depois muitas destas estruturas fabris fecharam portas, frequentemente, por décadas, deixando entrar a chuva, o mato e por fim a ruína. Nos anos mais recentes, porém, a revitalização urbana que tem vindo a tomar conta do país, integrou muitos destes edifícios devolutos que empobreciam as cidades e vários desses projetos estão a ressurgir nas cidades.
“Portugal vive uma fase sem paralelo. Há construção nova e reabilitação a surgir um pouco por todo o lado e alguns destes investimentos são assegurados por uma ‘pool‘ de investidores que procura projetos fora da caixa. E as fábricas são realmente um ativo muito apetecível pela sua arquitetura, pelos elementos fabris de início do século XX, as fachadas imponentes… Dão belíssimos projetos seja qual for o uso”, diz Sandra Campos, diretora do departamento de Retalho da Cushman&Wakefield (CW).
Porém, e apesar do potencial, realça a responsável, é preciso resiliência por parte dos investidores tendo em conta a morosidade de todo o processo burocrático. “Eu diria mesmo que é um ato de coragem tendo em conta que são processos ainda mais longos que o habitual. Até o processo de aquisição do imóvel devoluto é mais demorado. E depois a reabilitação é feita a pinças mas compensa para quem quer fazer um projeto diferenciador”, sublinha ainda Sandra Campos, dando como exemplo o projeto Fábrica 1921, em Benfica (onde a CW colocou um supermercado Auchan), o empreendimento Braço-de-Prata, que já está a transformar a zona da Matinha ou outros ainda em ebulição como o Lx Factory ou o da fábrica da Tabaqueira, que será também para habitação.
Um dos exemplos mais recentes chega da Madeira onde um dos maiores promotores da região, a AFA Real Estate está a reconverter as instalações da antiga moagem e fábrica de massas da Companhia Insular de Moinhos em empreendimento residencial – o Savoy Residence | Insular. A conclusão está prevista ainda para este ano e uma das suas imagens de marca é a antiga chaminé de estilo fabril que ainda hoje é uma referência na cidade do Funchal.
“O antigo edifício da Companhia Insular de Moinhos, construído em 1929, estava devoluto há várias décadas e bastante degradado. Contudo, o projeto residencial idealizado para o local teve como prioridade a preservação da memória coletiva e alma da cidade, com realce para reconstrução da chaminé da antiga moagem, por ser um elemento icónico que dá um carácter único ao projeto”, realçou Victor de Sousa, diretor-geral da AFA Real Estate, braço imobiliário do Grupo AFA, que tem atividade em diversas áreas de negócio entre construção, engenharia, gestão de resíduos, hotelaria (com a marca Savoy Signature), entre outras.
A chaminé, acrescenta ainda o responsável, que é “visível em toda a cidade do Funchal”, é também presença omnipresente em todo o projeto arquitetónico (da autoria da RH+ Arquitectos) pois “está integrada no hall principal e ao longo dos vários pisos do edifício, proporcionado uma ligação visual constante com este elemento”.
Para além de cumprir uma função idêntica à que já tinha anteriormente, “uma vez que esta era, na verdade, um reservatório utilizado para abastecer a fábrica por gravidade. Hoje, continua com esse papel e também inclui a passagem de condutas técnicas”, especifica ainda o responsável.
Parte do investimento de 60 milhões foi canalizado para a construção de um condomínio com 49 apartamentos de luxo (com preços entre 525 mil a 3.3 milhões de euros), entre lofts, triplex e penthouses, e 13 espaços comerciais. A outra parte foi destinada à comunidade.
“Irá ser recuperado um quarteirão e uma praça emblemática do Funchal, em pleno coração da cidade, preservando-se a história e a herança de uma zona que no século XV foi vista como as portas de entrada da cidade. É precisamente nesta zona onde irá nascer, fruto deste projeto, um dos mais importantes museus sobre a história do Funchal, no local exato que, no passado, definia o eixo de separação da ‘cidade dos ricos’ e ‘cidade dos pobres’”, conta Victor de Sousa, acrescentando que “o Savoy Residence | Insular permitiu requalificar uma zona histórica há muito degradada na nevrálgica baixa do Funchal, onde a cidade nasceu há mais de 500 anos”.
Das massas para os bancos de escola
Um uso diferente do residencial vai ter a antiga fábrica de massas A Napolitana, localizada em Lisboa, na zona de Alcântara, que vai ser transformada no Lisboan International School, colégio gerido pelo grupo Artemis Education.
A fábrica que foi construída em 1908, manteve-se em atividade até 1970 e é, até hoje, uma referência da arquitetura industrial portuguesa na cidade de Lisboa.
A devoluta fábrica de massas A Napolitana, em Lisboa, está a ser transformada num colégio internacional
“Estamos a celebrar a natureza histórica da Fábrica Napolitana enquanto projetamos uma escola voltada para o futuro. Casar duas abordagens arquitetónicas para criar um espaço de aprendizagem elegante e contemporâneo tem sido um desafio fantástico. A nossa intenção é criar um ambiente único para nossos alunos. Trabalhamos com o arquiteto Frederico Valssasina para manter as características do edifício e transformar um dos marcos arquitetónicos de Lisboa numa escola com alma”, diz, entusiasmado, Niall Brennan, CEO da Artemis Education, reforçando que o objetivo era “jogar com os pontos fortes do edifício”.
Assim, “as janelas industriais originais continuarão a inundar o espaço de luz” e “integridade estrutural do edifício” foi mantida, atendendo aos requisitos atuais de incêndio, terremoto e segurança. “Apoiamos, reforçamos e reconstruímos a fábrica quase inteiramente para garantir que ela permaneça de pé por mais 150 anos ou mais”, acrescentou ainda o CEO da Artemis, marca que
A escola, que vai abrir portas em setembro de 2023 e que já está a receber inscrições, tem uma capacidade para 1.200 alunos dos três aos 18 anos. “O ensino está enquadrado no currículo internacional do Reino Unido que combina os currículos Cambrigde e IB”, detalha ainda o responsável.
Os trabalhos estão a ser acompanhados pela Engexpor, que presta serviços de gestão de projeto e gestão da construção à RFR Group, empresa de origem norte-americana de investimento, promoção e gestão de imobiliário comercial e residencial, com sede em Nova Iorque.
De fábrica de meias a condomínio de luxo
É o projeto mais estruturante do momento na zona de Benfica dada a sua escala e impacto também na circulação rodoviária e na revitalização local e ganhou um destaque especial porque também o primeiro-ministro António Costa, há muito residente na zona, se rendeu ao projeto e ali comprou um T1.
Promovido pela Teixeira Duarte, o projeto da Fábrica 1921 levou mais de 15 anos a tomar forma desde o momento que a construtora comprou a antiga fábrica Simões, unidade fabril fundada precisamente no ano que dá nome ao empreendimento e que durante seis décadas marcou a vida de centenas de pessoas que por ali passaram.
Fechada há mais de 30 anos, a fábrica Simões & Cª, Lda, que produzia lingerie, meias e pijamas, entre outras peças, foi fundada por José Simões, um antigo operário fabril que criou o seu império a partir de uma única máquina de costura.
Contava uma reportagem da Time Out publicada em 2019 (altura em que a Teixeira Duarte arrancou com a construção do projeto), que o empresário ainda hoje era lembrado com “saudade” por muitas costureiras reformadas que ali trabalharam. “Quando morreu, nos anos 60, deixou uma quantia em dinheiro a cada funcionário. A ideia de comunidade que criou tinha reflexo na forma como tratava os filhos dos trabalhadores: não só disponibilizava gratuitamente uma creche, defronte da fábrica, onde davam banho aos miúdos todos os dias, como os vestia dos pés à cabeça na altura do Natal”, relatava-se na reportagem, lembrando que Luís Filipe Vieira, o ex-presidente do Benfica, “foi um desses miúdos”.
A fábrica esteve ao abandono durante cerca de 30 anos até ser intervencionada pela Teixeira Duarte que além dos cerca de 250 apartamentos da área residencial assumiu o compromisso de criar novas valências na zona. Uma nova avenida em Benfica (que liga a estrada de Benfica à Avenida Gomes Pereira e que vai ter o nome de 1921 Street Market) para estimular o comércio local e uma nova Biblioteca localizada no próprio empreendimento fazem parte das contrapartidas dadas pela promotora à freguesia. A nova biblioteca municipal António Lobo Antunes e centro interpretativo da obra do escritor vai ocupar dois pisos, numa área total de 1.850 m com diferentes funcionalidades, entre área multiusos, galeria, bem como uma sala denominada “Espaço António Lobo Antunes” que irá abarcar cerca de 20 mil títulos, manuscritos e outros documentos, doados pelo autor à cidade de Lisboa. O escritor, recorde-se, viveu uma boa parte da sua vida em Benfica.