Controlada que estará a pandemia em 2022 (assim se espera!), a urgência de salvar o Planeta voltará em força às agendas internacionais, relançando o debate sobre as alterações climáticas e a necessidade de mudar o paradigma das “cidades-máquinas”, assentes nas economias lineares, para as “cidades-organismos”, orientadas para as economias circulares. Indissociável deste debate, a Trienal de Arquitetura lançou o tema “Terra” e as linhas de orientação da programação da próxima edição, que vai realizar-se no outono do próximo ano. À frente da Trienal desde a primeira edição, em 2007, José Mateus é também o arquiteto fundador do ARX Portugal Arquitectos, atelier com várias obras premiadas (entre as quais o Museu Marítimo de Ílhavo ou o Fórum Sintra, por exemplo) e que assina também o projeto de reabilitação do edifício Castilho 203, um dos fortes candidatos a ganhar o prestigiado prémio de arquitetura Mies van der Rohe 2022 e que integra o apartamento de Cristiano Ronaldo, cuja construção de uma “marquise” esteve recentemente no centro de uma polémica.
Esteve envolvido na polémica da marquise de Cristiano Ronaldo. A esse propósito pergunto: diria que há pouca cultura arquitetónica em Portugal?
Sim. Em Portugal existe pouca consciência de que a arquitetura, como outras áreas da arte e da cultura, também tem um autor. A arquitetura desenha as cidades e, mesmo quando se limita a peças privadas, como uma habitação de família, constrói-se uma ideia de rua com os edifícios vizinhos. A rua é de todos e a qualidade do espaço coletivo, para lá de uma ideia de um somatório de autorias, é um bem público. Transformar, sem regras, esse espaço coletivo, é pernicioso porque coloca em causa, desde logo, os direitos dos vizinhos e dos cidadãos em geral.
Não passa pela cabeça de ninguém alterar um capítulo de autores como Fernando Pessoa ou Gonçalo M. Tavares…
A Trienal trabalha com a consciência de trazer programação e fazer a divulgação da cultura da arquitetura e da sua importância na vida das pessoas. A arquitetura é a manifestação, eu diria, mais abrangente – e deverá ser também a mais democrática – porque todos vivem na arquitetura. Por isso mesmo, merece respeito, merece uma reflexão profunda e, sobretudo, o empenho de todos.
O tema desta próxima edição é a Terra. Tendo em conta que a arquitetura sustentável é cada vez mais uma realidade, como avalia a implementação da mesma no nosso país?
O tema Terra incorpora múltiplos significados que estão associados às várias exposições que vamos fazer. Terra pode-se referir ao planeta, a uma ideia de lugar, a uma cidade, a um espaço, terra firme; pode referir-se à terra que cultivamos ou à terra com a qual construímos. Na essência de tudo isto está a sustentabilidade do nosso planeta. Sabemos hoje que vivemos uma crise grave a nível ambiental e temos de tomar medidas urgentes a vários níveis, muitas das quais não passam pela arquitetura, como sabemos, mas esta tem um papel absolutamente crucial. O que a Trienal pretende é dar um contributo relevante, reunindo o conhecimento mais atual, e no qual se inclui não apenas a investigação dos curadores mas também de universidades de todo o mundo. Queremos identificar os caminhos, saber quais são as formas de conhecimento, quais as visões mais relevantes em termos de sustentabilidade e +partilhá-las com o público. Quanto à sustentabilidade em Portugal, diria que a realidade é semelhante a muitos outros países da Europa. Há uma legislação europeia que, em si, já incorpora essas preocupações ambientais, nomeadamente impondo certificação energética e soluções técnicas que respondem à mudança de paradigma em termos de aquecimento e arrefecimento dos edifícios, isolamentos, etc. Mas a verdade é que, por vezes, fica-se muito aquém do que é preciso fazer…
O que falta fazer para conquistar uma maior sustentabilidade arquitetónica?
Há toda uma cultura de fundo baseada numa economia linear, de consumo de recursos, de distâncias muito grandes entre os lugares onde se fabricam os materiais e aqueles onde depois se constrói. É urgente passar para uma economia circular, assente na ideia da reciclagem, do ciclo de vida total de um edifício, desde a sua construção até à sua posterior reutilização ou demolição com reaproveitamento dos resíduos ou dos materiais com que é feito. Na economia circular está subjacente um aspeto fundamental: conhecer a origem dos materiais que depois vão fazer parte da construção de um edifício. É importante perceber de onde vêm esses materiais e de que forma são produzidos, para encurtar a distância entre o ponto de produção e o ponto de construção, porque essas distâncias produzem um impacto em termos de pegada de carbono absolutamente incomportável.
O Open House, que abre portas de dezenas de edifícios aos visitantes será, porventura, a face mais popular da Trienal da Arquitetura. O objetivo é envolver Lisboa e Almada…
O facto de abrirmos agora a programação a Almada parece quase natural porque, se pensarmos, é indissociável para quem vive na cidade de Lisboa a relação com o Tejo e com a outra margem. Aliás, se hoje em dia se chega a Lisboa através de automóvel ou de avião, durante séculos chegava-se através da Barra do Tejo. A reflexão sobre a consciência do espaço geográfico Lisboa, Almada e o Tejo, no centro, deve ser feita em conjunto. O Open House é um programa muito virado para a população das próprias cidades e o objetivo é que as pessoas possam conhecer melhor a arquitetura desses locais e possam visitar espaços que normalmente estão fechados ao público. Tudo de uma forma orientada, com guias que, no caso da Trienal, já são, em 100% dos casos, ou os autores dos projetos ou os investigadores que produziram trabalhos sobre aqueles edifícios. A informação dada é muito rigorosa e relevante. E a iniciativa é gratuita.
É importante perceber de onde vêm os materiais de construção, para encurtar a distância entre o ponto de produção e o ponto de edificação
Como avalia a revitalização urbanística que tem vindo a ser feita em Lisboa e no Porto?
Como todos os processos de grande escala, há sempre aspetos positivos e negativos. Até há oito anos, os ateliers mais competentes de Lisboa praticamente não desenhavam para a capital. Hoje, observamos que há uma quantidade muito grande de projetos em Lisboa feita por ateliers de grande competência, sejam estes mais reconhecidos ou com arquitetos bastante jovens. Isso é muito bom. Mas há também o outro lado. Na questão da habitação, temos uma contradição: há muitos projetos de grande qualidade do ponto de vista arquitetónico, construídos nestas cidades, mas do ponto de vista sociológico e dos ganhos para a população, os resultados ficam muito aquém do que deveria acontecer. Se a arquitetura tem como foco principal as pessoas, neste momento esse foco está demasiado concentrado numa faixa muito pequena e elitista da população de Lisboa e deveria, portanto, ser alargado para a classe média, para a população real, que representa, no fundo, 90% dos lisboetas.
Como se pode alterar esse rumo?
Para se garantir uma resposta urgente, rápida e eficaz em termos de habitação para a classe média lisboeta, tem de ser dada uma resposta com uma escala muito diferente daquela que tem sido dada até hoje. É preciso trabalhar ao nível do quadro legal para criar incentivos, prémios, situações de parceria, para criar apoios a cooperativas como existem, por exemplo, em Espanha. Em Lisboa, os incentivos que são dados a promotores que proponham a construção de apartamentos de rendas acessíveis são completamente desfasados das necessidades que a cidade enfrenta. É preciso uma resposta política e uma resposta no quadro legal, para se conseguir espoletar um processo com uma escala que corresponda às reais necessidades da classe média.
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