Os arquitetos do Colectivo Arquitectura Perto (Lista D) apontam ainda o dedo aos ‘compadrios’ que minam o setor, beneficiando um grupo restrito de ateliês e deixando de fora uma vasta maioria que vive na precariedade. Uma entrevista com Célia Gomes, que lidera a lista, juntamente com Ricardo Tedim Cruz e Patrícia Robalo, respetivamente candidatos à presidência da Secção Regional do Norte e de Lisboa e Vale do Tejo.
Dão a cara por esta missão de presidir a Ordem dos Arquitetos (OA) como um colectivo. Assim é mais democrático?
Célia Gomes – Não acreditamos no modelo em pirâmide em que existe apenas uma pessoa representativa de um grupo, e daí termos dito que seria interessante ter esta conversa a várias vozes porque realmente entendemos que é assim que devemos trabalhar. Obviamente, poderia ser só eu, ou o Ricardo, ou a Patrícia, aliás temos dado várias entrevistas e nunca somos os mesmos a fazê-lo e isso acontece propositadamente. E, portanto, achamos que um coletivo é muito mais forte enquanto estrutura horizontal, em que cada um tem a sua experiência, cada um tem a sua mais-valia, cada um tem a sua voz. E isto não é demagógico, funciona mesmo assim.
Ricardo Tedim Cruz – Não, não é nada demagógico. O que nós fizemos foi tentar interpretar os sinais dos tempos e começar pela nossa própria instituição, ou seja, dar poder a todas as pessoas que fazem parte dela para decidirem, transformarem, serem donas dos seus próprios destinos. As pessoas já não acreditam em instituições que tratam as pessoas, os membros, como atrasados mentais que se limitam a responder a diretivas e que não participam efetivamente nas decisões. Queremos transformar isto, o ar está irrespirável!
O que se passa na arquitetura foi que os partidos com representação parlamentar de forma maioritária tomaram conta da Ordem dos Arquitetos utilizando as instituições do Estado para eleger os dirigentes da ordem dos Arquitetos. A grande vantagem disto é que eles acabam por silenciar a Ordem dos Arquitetos em todas as decisões que são favoráveis à atual situação partidária, com prejuízo total do interesse público, da Arquitetura e dos cidadãos.
– O que quer dizer com isso? Tem a ver com a questão dos concursos públicos e de estes não estarem acessíveis a todos os ateliês?
Ricardo Tedim Cruz – Também, mas é muito mais vasto do que isso. Tem a ver com o emprego público. Os partidos controlam o emprego público, os partidos controlam os sindicatos… Eles destruíram os sindicatos, transformaram-nos em instrumentos de ação partidária. E fizeram-no em larga escala em todas as classes profissionais. E no caso dos arquitetos utilizaram a Ordem dos Arquitetos.
– A precariedade (crónica) entre os jovens arquitetos é a face mais visível dessa falta de poder reivindicativo?
Célia Gomes – Mas não é só dos jovens, a questão é essa. A questão da precariedade não existe só junto dos jovens arquitetos… Se calhar um arquiteto com 60 anos tem os mesmos problemas. Pode parecer estranho, mas é verdade. A nossa arquitetura não tem qualquer tipo de visibilidade no espaço público. Quando não se entende qual é a mais-valia de um arquiteto, para que é que ele serve, isso torna-se um problema. Nós estamos em campanha e temos estes temas todos muito presentes. Mas achamos que a Ordem tem um papel muito importante para resolver e neste momento não está a fazê-lo bem.
Na questão dos concursos públicos, por exemplo, nós somos defensores de que a encomenda pública deve ser feita exclusivamente através de concursos públicos por conceção. Isso está definido na lei. Só que existem exceções e o problema são essas exceções. Quando existem, acabam por ser essas a serem utilizadas. E, assim, temos as autarquias e vários organismos públicos a lançarem concursos públicos de arquitetura onde o critério de adjudicação épelo preço mais baixo.
Patrícia Robalo – O concurso público é sempre preterido porque quem concorre é anónimo, e portanto há uma maior incógnita do que sai dali. Mas este seria o melhor processo para o melhor resultado. Porque existe um júri isento, que escolhe com critérios pré-definidos e não se sabe a autoria de quem está a ser avaliado. Ou seja, permite democratizar o acesso dos arquitetos à encomenda pública. Quem não tem uma rede de contacto estabelecida e/ou nunca teve trabalho com a frequência necessária para manter o ateliê, o concurso público permite de facto uma equidade no acesso à encomenda pública.
Ricardo Tedim Cruz – Mas na verdade nós temos dois grupos de concurso público: para os arquitetos que estão fora do sistema, ou seja, fora da ação partidária, só têm acesso ao concurso por preço. E basicamente esfolam-se uns aos outros para ter o preço mais baixo, basicamente para ver quem tem mais prejuízo, com as devidas consequências na qualidade da obra e do interesse público. Isto são os ossos, para quem está fora da ação partidária! A ‘chichinha’ fica para aqueles que são colaborantes com a ação partidária, fazem-se concursos com prévia qualificação em que se combinam os preços e é assim que se retribui a devida colaboração com o partido.
Célia Gomes – A questão é que no Código de Contratação Pública, o CCP, está definido que os concursos de arquitetura devem ser feitos através do modelo de concurso por concepção de projeto… Se o Estado, se os organismos públicos usassem este modelo, teríamos menos precariedade na profissão. E isto não é demagógico, é a realidade. Muitos mais ateliês teriam acesso aos concursos.
Como é na maioria dos países da UE?
Célia Gomes – É por concepção de projeto…
– Esta questão é uma queixa recorrente. Como associados da Ordem fizeram chegar o vosso descontentamento?
Célia Gomes – A Ordem organiza congressos anuais, que são muito fechados dentro da bolha… Porque nós temos esse problema, nós arquitetos, mas isto a nível geral, vivemos sempre dentro de uma espécie de bolha.. Como é que nos comunicamos, como é que transmitimos, como partilhamos informação, como é que estamos junto da Ordem? Isso não existe. Quando podemos colocar questões da prática profissional, questões nossas, chegamos à Ordem e não conseguimos, é uma barreira, aquilo é completamente opaco, não sabemos a quem nos dirigir, não temos ninguém que nos ouça…
Patrícia Robalo – A Célia e o Ricardo têm toda a razão. De facto, o problema da precariedade, mas também o problema de não se pôr em prática o concurso público de conceção como ferramenta preferencial para a encomenda pública, o facto de todas as pessoas virem falar connosco e dizerem que a Arquitetura não entra no debate público, que ela não existe e não explica as valências que podem trazer à qualidade de vida das pessoas e do coletivo… Isso, de facto, são tudo assuntos que vêm de trás, mas o que temos sentido com este mandato é que a situação está a tornar-se cada vez mais agravada porque não são resolvidas as questões estruturais que condicionam gravemente o exercício da profissão e passados três anos, estamos a discutir exatamente as mesmas coisas que estávamos a discutir há 3 anos atrás.
Falaram da importância da arquitetura para a qualidade de vida das pessoas e do coletivo. A pandemia veio dar um destaque maior a essa questão. O que deveria ser feito, se tivermos em conta que este tipo de pandemias poderão ser recorrentes?
Ricardo Tedim Cruz – Neste momento, devia haver um debate profundo sobre as funções que entraram dentro da casa, e que foram imensas. As casas tiveram de se transformar em escritório, em escola, em ginásio, o Estado demitiu-se praticamente de todas as funções e as pessoas tiveram de as absorver dentro das suas próprias casas. E o que se passou foi uma desigualdade profunda em relação ao acesso à qualidade da habitação. Além de ter sido vedado o acesso à propriedade pública sem qualquer discussão, sem qualquer debate público.
Mas temos de começar já a pensar como é que no futuro as casas podem funcionar melhor. Como é que as casas que têm uma qualidade inferior e não estão adaptadas podem ser intervencionadas de uma forma simples para que possam melhorar a qualidade de vida dos seus moradores.
Patrícia Robalo – As pessoas aperceberam-se que a qualidade da habitação e do espaço público influenciam diretamente os seus modos de vida. Aperceberam-se do espaço, que normalmente usavam sem ter consciência da sua definição e até do território e dos modelos urbanos (se estão bem consolidados ou não, se existem espaços públicos onde é possível dar um passeio para arejar as ideias, etc). Há uma série de valências que se relacionam com o espaço público, com a habitação, com o desenho dos bairros que se tornaram muito visíveis no momento do confinamento porque este é um momento de radicalidade. Será muito interessante ter a arquitetura a acompanhar a revisão de tudo que é o desenho das tipologias do habitar e uma nova reflexão sobre as questões urbanas.