A aparência discreta e serena da diretora da Clínica de Diagnóstico Dual de Medicina da Adição de Stanford, no estado da Califórnia, contrasta com a rapidez do discurso, a mente inquieta e uma honestidade desarmante. Aos 55 anos, a docente de Psiquiatria e Medicina da Adição vive bem com o facto de ser uma pessoa ansiosa, um pouco cética, e não tem problemas em admitir que conviveu desde cedo com a doença mental, tomou antidepressivos para a irritabilidade ligeira crónica e, como os seus pacientes, se perdeu nos caminhos do prazer. Com vários prémios e mais de uma centena de artigos científicos, a investigadora é uma voz ativa e acutilante na área das dependências, no plano institucional, em podcasts e documentários (veja-se O Dilema das Redes Sociais, na Netflix, em 2020). Em Dopaminados (Nascente, 320 págs., €19,95), o seu best-seller, aborda as causas e os mecanismos do consumo compulsivo e propõe soluções para equilibrar a balança da dor e do prazer no cérebro, em nome de uma vida mais plena, liberta do paradigma da gratificação imediata – e doentia –, que marca a sociedade atual.
O que a motivou a estudar Psiquiatria e a dedicar-se à medicina da adição?
Inicialmente, escolhi a Patologia. A minha irmã tinha doença mental severa, e só depois de conseguir ter distanciamento emocional face aos surtos psicóticos dela é que mudei a área de estudo. Curiosamente, fugia das adições, que, na altura em que concluí o curso, não eram entendidas como uma doença, mas algo que se resolvia com força de vontade e medidas sociais.
O que mudou, depois?
Na viragem do milénio, tive um incidente com uma pessoa que acompanhava há nove meses: os fármacos e a psicoterapia não estavam a funcionar, e, um dia, adormeceu na sessão. Só percebi o que estava em jogo quando o seu irmão me disse que ela tinha tido um acidente de viação por ter voltado à heroína. Desconhecia-o e senti-me mal por nunca ter inquirido a paciente sobre consumos. Desde então, passei a colocar a questão sobre álcool e drogas e dei-me conta de que havia muitos casos de dependência de fármacos – opioides, benzodiazepinas, estimulantes – prescritos por médicos. Foi também por isso que escrevi o livro Drug Dealer, MD, em 2016, que analisa as razões ligadas ao problema, dentro da medicina.
A busca desenfreada do prazer e a fuga à dor têm um preço?
Essa ideia já vem dos filósofos da Antiguidade. Platão, Demócrito e Sócrates anteviram mecanismos que são, hoje, validados pela neurociência. O nosso cérebro é incrivelmente complexo, e o número de neurónios e de conexões é tão grande como o de estrelas no céu. A dopamina, descoberta na década de 1950, tornou-se uma molécula muito eficaz para compreender os circuitos de reforço e de recompensa: quando o neurotransmissor é libertado nas vias dopaminérgicas, essa memória vívida fica tatuada no hipocampo. Devido ao mecanismo da neuroadaptação, o cérebro ganha tolerância e precisa de mais dopamina para obter o mesmo efeito, ficando com maior sensibilidade à dor. Essa é a base da adição: a busca incessante do prazer leva, paradoxalmente, à incapacidade de o sentir.
Em que medida é que isso influencia a nossa saúde e bem-estar?
Estamos a falar de algo em que não temos de pensar, ou de uma resposta quase reflexa. A nossa programação cerebral não está adaptada ao mundo moderno, em que acedemos, de forma ilimitada, a drogas e a comportamentos que conferem gratificação imediata, até mesmo aqueles que julgávamos adaptativos, como ler, praticar exercício físico, jogar xadrez e outros jogos ou relacionar-se com outras pessoas. Hoje, todos somos mais vulneráveis ao potencial aditivo. Basta pensar nas crianças: mal entram na escola, têm de usar computador e estar ligadas, para saber os horários, que estão sempre a mudar, já que a tecnologia o permite. Como diz o meu marido, o facto de podermos fazer uma coisa não significa que devamos fazê-la!
Estamos reféns dos sistemas que, em teoria, nos trazem mais felicidade e conforto?
Sim. Em termos filogenéticos, os circuitos de recompensa mantiveram-se inalterados, ou seja, a parte antiga do nosso cérebro continua operacional. Embora estejamos biologicamente equipados para procurar o prazer e evitar a dor, vivemos num ambiente em que a gratificação está ao alcance de um toque de dedo, o que nos deixa numa posição muito frágil.
O filósofo Byung-Chul Han (autor de A Sociedade do Cansaço) defende que a cultura de conveniência, o excesso de positividade e o acesso a tudo promovem perturbações da atenção e estados de exaustão. Concorda?
Não li, mas parece-me fazer imenso sentido. No limite, procurar compulsivamente recompensas cada vez maiores leva ao desespero. O cérebro é confrontado com excesso de estimulação, ou de intoxicação, e a forma que encontra para compensar isso é reduzir a transmissão de dopamina e de outros neurotransmissores – e esse défice conduz à ansiedade, à depressão e à incapacidade de dormir ou de se concentrar. O excesso demográfico e os níveis de abundância a que assistimos nas últimas décadas geraram-no: quanto mais rica é uma nação, mais infelizes são as pessoas. A adição é o lado negro do capitalismo, que assenta na ideia do consumo sem limites.
O que a leva a questionar os usos da farmacologia, sobretudo na área mental?
No meu livro anterior, falei sobre a medicalização da pobreza e a facilidade com que se adere a drogas que alteram os estados mentais, para tratar o sofrimento humano normal. Neste livro, quis analisar as razões que levam à prescrição crescente de psicotrópicos: os dados disponíveis permitem afirmar que, se uma pessoa for pobre ou desempregada, a probabilidade de lhe receitarem ansiolíticos e antidepressivos é maior. Isso preocupa-me, e receio que se esteja a legitimar o ópio das massas.
Porque acha que se está a ir por aí? Estaremos a entrar numa espécie de distopia?
Eliminar a dor é um argumento muito forte nas políticas de saúde. É um facto que algumas pessoas têm uma predisposição inata para se envolver em comportamentos aditivos, mas, diante da adversidade e do sofrimento, a prioridade deveria ser dar um rumo e um propósito às nossas vidas, sem andarmos anestesiados.
Também podemos viciar-nos em coisas que nos causam dor?
Usando a analogia da balança, sempre que um dos lados tem mais peso, seja o do prazer ou o da dor, o organismo entra num estado de desequilíbrio. À luz da ciência da hormese, o regresso ao estado neutro faz-se pressionando, intencionalmente, o lado oposto da balança, num movimento pendular. Isso acontece, por exemplo, na prática de exercício físico, que gera dano celular, ao qual o cérebro responde acionando mecanismos de reparação, pela libertação de hormonas e neurotransmissores que geram bem-estar. Na dose certa, a dor do treino tem o efeito desejado e traz bem-estar; se for a menos, não chega a produzir os efeitos desejados e, sendo a mais, causa danos permanentes. Isto aplica-se ao treino excessivo, à estimulação com banhos gelados ou ao jejum intermitente: um dos lados da balança tende a ficar desalinhado em relação ao outro.
Isso explica o fenómeno dos viciados em trabalho, em desportos radicais e afins?
Vemos pessoas viciadas em exercício ao ponto de porem em risco o desempenho de outras atividades, porque, como disse há pouco, num mundo em que a lógica é converter toda e qualquer coisa que façamos numa droga, até os comportamentos saudáveis nos tornam mais expostos à adição. A dopamina é muito sensível aos números, e isso é o que mais acontece na prática desportiva. Os equipamentos dos ginásios têm vários percursos de corrida e diversos parâmetros programáveis; os dispositivos eletrónicos, para quantificar o ritmo cardíaco, mostram-nos os passos dados, a distância percorrida, o quão rápido nadamos e, além disso, fomentam a partilha digital dos valores obtidos e a comparação de likes. A certa altura, deseja-se correr riscos cada vez maiores e não se consegue parar.
É comum dizer-se que o exercício nos protege de cair em vícios. O que mostram os estudos?
Os cientistas pensavam que as rodas utilizadas para as cobaias, em laboratório, eram uma forma neutra de medir a atividade física. Quando colocavam um manípulo que permitia obter cocaína sempre que pressionado e uma roda, o animal optava por recorrer ao manípulo com menos frequência, por ter outra coisa para fazer no seu espaço. Contudo, alguns estudos mostraram que a roda, em si, era uma droga, porque havia ratos que corriam até ficarem exaustos e morrerem. A experiência foi replicada em ambiente natural com outros animais, e constatou-se que eles tinham um comportamento idêntico, acabando por transformar aquela atividade num vício.
A solução passa por questionar a natureza da nossa realidade, mesmo que isso pareça contranatura?
Quando compreendermos que o consumo excessivo e a constante busca do prazer pelo prazer são a verdadeira causa da nossa infelicidade, o remédio natural é abstermo-nos ou moderar o consumo e os comportamentos, incluindo os que nos parecem inofensivos, como ver programas televisivos, usar videojogos ou navegar nas redes sociais. A paragem, mesmo que temporária, visa o restauro [reset] das vias de recompensa no cérebro.
Que medidas nos deixam menos vulneráveis ao ciclo da adição?
Renunciar ao excesso de apelos que nos tornam vulneráveis à dependência e convidar a dor para as nossas vidas pode devolver-nos o contentamento e deixar-nos mais resilientes. Criar barreiras geográficas e temporais entre nós e os estímulos a que somos continuamente expostos, aceitar a incerteza e caminhar com os nossos medos é a via para ter pensamentos e emoções sustentados e produzir algo novo.
Os casos apresentados no livro incluem também aspetos pessoais. O que esteve por trás dessa opção?
Foi muito assustador expor aspetos da minha vida pessoal, sendo uma docente, médica e psiquiatra que, alegadamente, não tem problemas e trata os dos outros. Ao pedir aos meus pacientes para partilharem as suas histórias reais – apenas alterei os nomes –, seria uma falta de coragem da minha parte não o fazer também. Além disso, fui moldada pelo campo da medicina da adição, que tem uma forte ética de transparência. Contrariamente ao registo confessional e autoindulgente que se vê nas redes sociais, por vezes exagerado, dispus-me a mostrar os meus erros e defeitos de caráter. O feedback dos leitores confirma-o: as pessoas identificaram-se, sentiram-se tocadas, porque todos temos falhas, conflitos e não somos totalmente imunes à adição.
Porque afirma que a vergonha restaura a nossa humanidade?
É uma das emoções mais poderosas e sociais que temos. Ao transgredirmos normas, enfrentamos o terror da rejeição; por isso, mentimos e coramos só de pensar que podemos ser apanhados. Experimentar algum grau de vergonha e de arrependimento dá-nos a consciência e a motivação para mudar, o que, no caso das pessoas com adições, pode representar aderir a um programa de reabilitação. Devemos encorajar os nossos filhos a sentar-se com a vergonha e a descobrir o que precisam de fazer para não terem de passar por isso outra vez. Se queremos mudar um sistema a partir da base, precisamos de abaná-lo, pois só dessa forma poderemos criar novas redes neurológicas para enfrentar o desafio.