Nasceu na Moldova, cresceu com a Perestroika de Gorbachev e, atualmente, é professora de História da Rússia na Universidade de Newcastle, no Reino Unido. Como historiadora, preferiu esquecer as batalhas e os generais – interessou-se antes pelo conceito de paz, dos ideais do Iluminismo às instituições da União Europeia. Escreveu um livro original, intitulado À Conquista da Paz, que acaba de sair em português pela mão das Edições Desassossego, e já está a trabalhar na sua próxima obra, sobre a História do Mar Negro. Por causa dessa investigação, no princípio do ano, antes da invasão da Ucrânia, passou uma temporada nos arquivos de Odessa.
Começo da mesma maneira que termina o seu livro: para onde vai a Europa?
É justamente isso que pergunto mesmo no final do livro: quo vadis, para onde vais, Europa? Porque acho que, enquanto historiadora, ou seja, enquanto alguém que olha para o longo prazo, devo chamar a atenção para o facto de a paz nunca estar garantida para sempre. Os Estados europeus devem trabalhar juntos para construir a paz.
É por isso que gosta de usar a expressão “engenharia da paz”?
Sim, apresento esse termo porque quero salientar a forma como construímos e melhoramos a nossa coexistência pacífica, com base na nossa experiência e no que aprendemos com o passado. Hoje, vivemos uma situação em que os líderes políticos de muitos Estados sofrem de uma espécie de amnésia. Parece que esquecemos o nosso passado. No meu entender, o historiador também deve lutar contra essa amnésia. Temos uma memória muito curta, mas é bom sabermos que é possível aprender com as experiências prévias, do passado. Vejamos o caso da guerra entre a Rússia e a Ucrânia: o que poderíamos ter feito antes para evitar a trágica situação que atualmente temos na Europa? Outro conhecimento do passado podia ter-nos ajudado a evitá-la?
Mas há quem defenda que não faz sentido esse tipo de pensamento, por analogias, porque a História não se repete, e as circunstâncias acabam sempre por ser diferentes.
É muito importante que levante essa questão. É verdade que cada momento tem o seu contexto específico, mas também é verdade que as situações podem ter alguns pontos em comum. É esse o objetivo da “engenharia da paz”: na próxima vez, fazer melhor. O meu livro está organizado em torno de cinco momentos depois de grandes guerras na História europeia. Habitualmente, a maioria dos livros sobre a História europeia foca-se nas guerras, nas revoluções, nas grandes agitações. Também temos a ideia de que os livros mais interessantes tratam sobretudo das glórias militares. Gostamos de generais e de batalhas. De acordo com os inquéritos realizados em França, ainda agora, Napoleão continua a ser o herói nacional n.º 1! Quero contrariar esta ideia, reescrever este discurso, propor uma nova narrativa sobre a Europa através da lente da paz e da construção da paz, desafiar estereótipos e preconceitos que possamos ter acerca da paz. Tivemos, na Europa, alguns momentos de paz aos quais nunca demos suficiente atenção.
A paz não é apenas o contrário da guerra?
Não. E não se trata apenas de acabar com a guerra, reestabelecendo a paz, trata-se, em primeiro lugar, e sobretudo, de manter a paz. Se olharmos para os cinco momentos que identifiquei no livro, vemos uma linha de continuidade entre eles: guerra da sucessão espanhola, no século XVIII, Congresso de Viena a seguir às guerras napoleónicas, a I Guerra Mundial e o nascimento da Sociedade das Nações, o fim da II Guerra Mundial e a criação das comunidades europeias e, depois, a queda da União Soviética e o fim da Guerra Fria. A paz não é apenas a ausência da guerra. É reconciliação, confiança, livre circulação de pessoas, bens e ideias… Como digo no final do livro, a paz é para os fortes, a guerra é para os fracos.
Na sua opinião, porque é que, de um modo geral, se valorizam mais os generais que fazem a guerra do que os construtores da paz?
Ideias preconcebidas? Se se olhar para os livros, para os historiadores, para a maior parte dos estudos sobre a História europeia, tudo tem que ver com a guerra. Não raras vezes pensamos que a paz é aborrecida… E isto não é, de todo, verdade.
Como se nada acontecesse nos períodos de paz.
Pelo contrário! O processo de paz é uma aventura, com muitas voltas e mudanças. No fundo, existe a perceção de que não são momentos interessantes. Sabe, quando iniciei esta investigação, tive colegas a dizer-me que ia escrever o livro mais pequeno de sempre. Acabei por escrever um livro com quase 500 páginas! [Risos.]
No entanto, podemos dizer que persiste o ideal kantiano de paz perpétua?
Sim, hoje podemos chamar-lhe paz duradoura. Sou uma historiadora da longue durée [longa duração]. Trabalho sobre uma ideia de Europa mais alargada: no tempo, uma vez que o meu livro cobre um período de três séculos, mas também no espaço, dado que vou além da Europa “Ocidental”, dos países que muitas vezes são privilegiados pelos historiadores (de França, da Alemanha e, eventualmente, da Grã-Bretanha; nos livros sobre a História da Europa, países como Portugal e Espanha, mas também países de Leste, são marginalizados). Faço uma clara distinção entre a ideia de paz, a ideia de Europa num sentido político, que vem do Iluminismo, e a União Europeia (UE), para a qual olho sobretudo como um instrumento, a materialização de uma ideia de paz. Se se pensar na UE como um edifício, temos de admitir a possibilidade de esse edifício, um dia, pode vir a ruir. Nunca vi uma organização eterna. Mas a ideia de paz como uma ideia europeia é algo muito mais forte. A UE até poderá acabar, mas não é possível matar uma ideia.
A União Europeia tem um enorme poder de atração que a Rússia de Putin não compreende. E não é possível lutar contra este poder de atração no campo de batalha
Na sua opinião, a pandemia e a guerra na Ucrânia tornaram mais forte o projeto da UE?
A História da Europa mostra-nos que os europeus tendem a unir-se nos momentos de crise, em tempo de guerra, em alturas de crise, quando existem fortes agitações. Mencionou a pandemia, mas recentemente também tivemos de enfrentar outras crises: a crise dos refugiados e, até de certa maneira, o Brexit, que na verdade revelou ser uma tempestade num copo de água… Nas últimas semanas, vimos como os Estados europeus quiseram unir-se não só contra a agressão militar da Rússia sobre o Estado independente e soberano da Ucrânia, mas também no sentido de quererem criar uma rede de solidariedade. Repito: a paz não é apenas a ausência da guerra, não é apenas a ausência da violência militar. É algo mais do que isso, para se conseguir de facto a paz, é preciso reconciliação. E onde estava a reconciliação com a Rússia depois da Guerra Fria? A construção da paz é um longo processo no tempo.
A totalidade das consequências da invasão russa ainda é difícil de prever, no longo prazo. Para um historiador, o que já mudou desde o dia 24 de fevereiro?
Um historiador, precisamente, trabalha com o passado [Risos]. Precisamos de tempo, precisamos de perspetiva… Agora, também eu estou muito preocupada com o que se está a passar. E há certamente uma evolução preocupante: a atenção que os europeus estão a dar a esta noção de que, depois da II Guerra Mundial, a guerra pode estar a regressar. Nunca podemos dar a paz como garantida. Temos ainda a ideia arcaica de que as grandes potências fazem a guerra à sua vontade e de que, no fundo, elas concedem uma espécie de paz benevolente a todos os outros países. Também pretendo contrariar esta ideia de grandeza da guerra: no caso do conflito Ucrânia-Rússia, uma potência entrou numa guerra porque se sentia enfraquecida. Apesar de toda a propaganda e desinformação, a Rússia, neste momento, é um exemplo de fraqueza, fraqueza económica e militar.
E que tipo de poder tem demonstrado a UE?
O soft power da UE também está relacionado com um conjunto de valores que nos dias de hoje constituem um enorme poder de atração para países como a Ucrânia, a Moldova e a Geórgia. Estes povos expressam claramente o seu desejo de pertencer à UE, querem fazer parte da grande família europeia. Apesar de todas as críticas que possamos fazer-lhe, a UE tem este enorme poder de atração que a Rússia de Putin não compreende. E não é possível lutar contra este poder de atração no campo de batalha.
Segundo Angela Merkel, Putin é um líder do século XIX, agindo no século XXI.
Isso é verdade. Penso que a Rússia de Putin está a atuar como o último império do continente europeu. Um império que pensa que, com a força das armas, pode conquistar Estados e territórios em seu redor. A História europeia dos últimos três séculos demonstra-nos que todos os impérios continentais falharam: o império napoleónico, o segundo e o terceiro Reich, a União Soviética. Todos falharam na sua ambição imperialista de levar a “paz” aos países vizinhos. Isto nunca aconteceu e, definitivamente, no longo prazo, não vejo como o Kremlin possa vir a ganhar esta guerra. Claro que não tenho uma bola de cristal e o futuro não está escrito. Também não sou estratega militar e, por isso, não posso dizer quando a guerra vai acabar, mas a História mostra-nos que, muito provavelmente, o último império europeu vai falhar.
Há quem argumente que a guerra da Ucrânia acabará com as Nações Unidas, como acabou a Sociedade das Nações. O que pensa sobre esta questão?
Sou muito crítica em relação às restrições que são postas às Nações Unidas e ao seu papel na construção da paz. O poder de veto – que como se sabe foi concedido aos membros fundadores do Conselho de Segurança, incluindo a Rússia, uma história complicada entre Roosevelt e Estaline… – significa que o caminho do mundo em direção à construção da paz tem sido, constantemente, bloqueado por um grande poder ou por outro. Por causa deste poder de veto, às Nações Unidas é negado o direito de prevenção da guerra e de manutenção da paz nas fronteiras do Leste da Europa. Portanto, se não arranjarmos uma maneira de agir no sentido de levantamento do poder de veto, o que vai acontecer às Nações Unidas é o que aconteceu à Sociedade das Nações: vai desmoronar-se. O problema é o mesmo. Talvez o passado possa conceder-nos algumas vias de reflexão para que haja uma reforma nas Nações Unidas.
Julgo que as suas origens estão na Moldova…
Sim, foi onde nasci. Passei dois terços da minha vida na Suíça, trabalhei durante vários anos nos Estados Unidos da América e, agora, dou aulas no Reino Unido. Julgo que, de alguma maneira, a minha experiência suíça influenciou o meu interesse pela paz, mas é verdade que as minhas origens estão na Moldova, perto do Mar Negro. Também acho que me deu uma visão particular sobre a paz e a guerra. Na infância, também costumava passar férias em Odessa.
Que recordações tem desse tempo?
Sou uma criança da Perestroika. Cresci com a ideia de Gorbachev da “casa comum europeia” que todos os estados da antiga União Soviética desejavam adotar. Não podemos ensinar História com base na perceção de que as pessoas devem manter-se separadas e de que não devem falar entre si. Isso é o que provoca a guerra. E hoje, na Rússia, voltou a ensinar-se História assim às novas gerações, contra os outros, enfatizando as diferenças e, muitas vezes, dizendo que são superiores aos outros. Nasci na União Soviética e sei muito bem o que significava ter os EUA como “inimigo comum” durante os anos da Guerra Fria. A História deve ser estudada e ensinada de outra forma: deve reconciliar os povos, ajudando-os a ter simpatia e até empatia pelos outros.