“Quando consultei o arquivo da PIDE para a minha tese, vi pessoas a chorar, chocadas com o que estavam a ler”

“Quando consultei o arquivo da PIDE para a minha tese, vi pessoas a chorar, chocadas com o que estavam a ler”

Desde que, em 2007, publicou A História da PIDE, que lhe valeu a atribuição do Prémio Pessoa, Irene Pimentel não parou de investigar a sinistra polícia política do Estado Novo. O último livro, Informadores da PIDE, Uma Tragédia Portuguesa (ed. Temas e Debates/Círculo de Leitores) é já o quinto sobre os segredos da força policial formada por Salazar em 1933 (com o nome PVDE). Nele, a historiadora traça o retrato-tipo e analisa as motivações dos cerca de 20 mil informadores existentes à data da extinção. Escrito durante o segundo confinamento, depois de uma polémica pública sobre a alegada “cumplicidade” do cidadão comum com a PIDE, colocou em pausa outra investigação, sobre o relacionamento entre aquela polícia e os serviços secretos de países democráticos. Esse novo livro ainda não tem data de publicação, porque “está a ser um pouco difícil o acesso aos arquivos, aos nossos e aos dos outros”. Principalmente àqueles que estão à guarda das Forças Armadas.

A PIDE era diferente das polícias políticas de outros países?
Estudei principalmente a PVDE [1933-45], comparando-a com a Gestapo, a polícia nazi, e com a OVRA, a polícia fascista italiana. Depois do fim da guerra, a PVDE continua a existir como PIDE [1945-69], mas as outras não. Quase todas essas polícias tinham um caráter exclusivamente militar, ao passo que a PVDE, a PIDE e a DGS [1969-74] nunca foram uma polícia militar, embora fossem dirigidas por militares. De acordo com a minha análise da ditadura portuguesa em relação ao nazismo e ao fascismo italiano, a diferença racial e antissemita é o que mais distingue a Gestapo da PIDE, e também da OVRA até 1943, quando passou a haver uma política antissemita, mas não de extermínio. Mas também havia semelhanças. Em 1933, quando Hitler chegou ao poder, os primeiros alvos da repressão, ainda antes dos judeus, foram os adversários políticos de esquerda. Os comunistas e os socialistas foram metidos em campos de concentração e ficaram sob a tutela das SS, que era um Estado dentro do Estado. A PVDE/PIDE/DGS não era um Estado dentro do Estado porque nunca foi autónoma. Era a polícia de um ditador. Primeiro, de Salazar, e depois de Caetano, mas sobretudo de Salazar. Em 1937, quando houve o atentado falhado contra Salazar, a PVDE achou que tinham sido os comunistas, mas a Polícia Judiciária (PJ) e a PSP descobriram que tinham sido os anarcossindicalistas. Foi um falhanço enorme da PVDE, que podia ter acabado ali e ter sido substituída por outra. Até veio cá um senhor da polícia italiana, Leone Santoro, aconselhar um comando único que englobasse PSP, GNR, Guarda Fiscal e PVDE. Salazar disse-lhe taxativamente que não, porque receava não conseguir controlá-lo. Aí, sim, poderia haver um Estado dentro do Estado.

E com Espanha? Também havia grandes diferenças?
Espanha era um caso diferente. Quando Franco ganhou a guerra civil, a Dirección General de Seguridad, a verdadeira polícia política, tornou-se muito mais brutal do que a portuguesa. O próprio Mussolini chegou a dizer ao Franco que não entendia como ele reprimia o seu povo daquela forma. Os adversários políticos eram mortos, sem julgamento, e as suas mulheres eram alvos de reeducação, ficando sem os filhos. É na Espanha de Franco que começam os raptos de crianças republicanas para serem entregues a famílias franquistas. Também houve perseguição contra certas pessoas, como os maçons, que aqui não aconteceu. A Maçonaria foi proibida, através da lei que em 1935 ilegalizou as sociedades secretas, mas como havia simpatizantes na União Nacional, Salazar não os reprimia com prisão. Em Espanha sim, e havia uma polícia própria para perseguir os maçons.

Por que razão a PIDE nunca se tornou uma política militarizada, se até era dirigida por militares?
Salazar apoiou a ditadura militar de 1926, mas quis civilizar o regime porque era assim que o controlava. Só assim ele podia ser o ditador de um novo regime.

Salazar não era militar. Terá sido por isso?
Absolutamente. A sua preocupação terá sido a de controlar as Forças Armadas. Durante a ditadura militar, houve várias tentativas de golpe dos reviralhistas, que eram militares, da PSP e da GNR. Ele fez o “saneamento” dessas organizações, mas, para dar alguma coisa às Forças Armadas, escolheu militares para dirigir a Censura, a PIDE ou a PSP. Em 1960, o diretor da PIDE Homero de Matos, que vinha da GNR, tentou transformar a PIDE numa organização militarizada. Dirigiu cartas ao Salazar e ao ministro do Interior propondo que a tutela da PIDE passasse do Interior para a Defesa Nacional. Também quis fazer da PIDE uma polícia secreta. Antes da DGS, os funcionários nomeados para a PIDE vinham em Diário do Governo. Só mais tarde, no tempo do Marcelo Caetano, é que deixaram de ter o nome escarrapachado. Para o PCP, era bom, pois sabia-se quem eram! A PIDE apanhou, creio que ao Octávio Pato, uma lista com nomes e moradas de muitos deles [risos]. Mais tarde, já nos anos 70, o diretor dos Serviços de Informação, Álvaro Pereira de Carvalho, quis transformar a PIDE num serviço de intelligence à maneira da CIA ou dos serviços secretos franceses, passando a investigação para a PJ e eliminando, assim, a parte mais terrível da DGS. [Na corrente edição da VISÃO História, sobre A PIDE e os Presos Políticos, Irene Pimentel escreve sobre a história da PIDE, os seus dirigentes e inspetores e os métodos de tortura.]

Até que ponto a longevidade da ditadura se ficou a dever à PIDE e à sua rede de informadores?
Tivemos a mais longa ditadura da Europa. A grande pergunta historiográfica é saber porque durou tanto tempo. A partir de 1945, com o pós-guerra e a Guerra Fria, o regime contou com as Forças Armadas, a Igreja Católica e outras instituições como o corporativismo, a Mocidade Portuguesa, a Legião Portuguesa… Mas também contou muito com a PIDE e a sua rede de informadores. A PIDE não foi só repressão. Criaram-se cumplicidades, de que as pessoas se aproveitaram porque o regime parecia ser eterno. Muitas pessoas candidatavam-se a informadores, oferecendo-se à PIDE, ao Ministério do Interior e ao próprio Salazar. Não há uma única ditadura que não funcione com grande número de delatores, e a PIDE foi muito eficaz ao criar a impressão de que estava em todo o lado. Espalhou a insegurança e o medo. 

Nos 50 anos do 25 de Abril, é fundamental abrir todos os arquivos que ainda estão fechados, especialmente os militares, para que se possa fazer a história da guerra colonial

Isso explica o pós-titulo do livro, Uma Tragédia Portuguesa?
Não há maior tragédia do que a falta de confiança e a traição. Quando consultei o arquivo da PIDE para a minha tese, vi pessoas a chorar, chocadas com o que estavam a ler.

Admite a existência de uma cultura de denúncia mas há cerca de um ano, numa polémica entre historiadores, contestou a tese de que os portugueses se adaptaram à PIDE, tornando-se seus cúmplices…
É completamente errado dizer que todos os portugueses foram contra o regime, como é errado dizer que todos foram informadores da PIDE. O número de informadores, em 1974, era de cerca de 20 mil, mas não quer dizer que não tenham sido mais, ao longo dos anos. Mas isso não faz com que grande parte da população… não quero entrar muito nessa polémica.

Este livro é uma resposta a essa polémica? 
Chocou-me imenso a forma pouco amadurecida, leviana, e com grande desconhecimento da realidade… Não é por termos vivido nesse período que sabemos mais, mas tinha muitas fontes que não usei na tese de doutoramento e aproveitei o segundo confinamento para fazer este livro. Uma coisa que não fiz, e tenho pena, foi estudar a PIDE e os informadores na Guerra Colonial.

No livro, faz um retrato-tipo do informador. Era-se informador por convicção, por chantagem ou em troca de benefícios?
A maioria das pessoas não o fazia por convicção. Cito um caso, de alguém que até era a favor do regime, mas que a dada altura pediu dinheiro à PIDE para pagar uma dívida. Era-se informador por inveja, mas também por chantagem e por partilha do poder. O Pacheco Pereira, quando apresentou o meu livro, disse que há um trabalho historiográfico muito importante por fazer, sobre a cunha. Está muito ligado a esse tipo de poder e de vantagem que se procura. A corrupção não é mais nada do que isso. 

A Comissão de Extinção da PIDE fez o seu trabalho? Houve responsabilização judicial dos elementos da PIDE?
Não é verdade que tenha ficado tudo bem e que os antigos “pides” e informadores se tenham esgueirado… Não é bem assim. Houve prisões, instrução de processos, julgamentos e condenações. Muito do meu trabalho sobre os informadores da PIDE vem da instrução dos processos. Vi alguns, são uma ótima fonte. Agora já não podem ser vistos, mas penso que terão de o ser, à medida que o tempo passa, porque são materiais informativos do melhor. Como foram feitos no Tribunal Militar, a tropa não quer mostrar muita coisa sobre a Guerra Colonial.

Foi feita justiça?
Não se fez justiça tal como se pensava, mas agora também já não é o tempo. Houve um processo de justiça política, o que para muitas pessoas não foi suficiente. Para mim, o grande falhanço foi o não ressarcimento das vítimas.

A reparação histórica aos presos políticos ficou por fazer?
A justiça reparadora ficou esquecida na passagem para a democracia. As próprias vítimas não pensaram nisso. Nos anos 80, foram ressarcidas, na contagem para a reforma, dos anos de afastamento dos empregos no Estado e dos tempos de exílio, de clandestinidade e de prisão. Mas o trauma psicológico não foi considerado. Aconteceu o mesmo com o stresse pós-traumático dos combatentes, que só muito mais tarde foi reconhecido. Devia-se ter alargado esse estatuto às vítimas do regime.

Referiu a necessidade de abrir os arquivos militares…
Absolutamente. No cinquentenário do 25 de Abril, é fundamental abrir todos os arquivos que ainda estão fechados, especialmente os militares, para que finalmente se possa fazer a história da guerra colonial. Para esta nova investigação, procurei os arquivos do relacionamento da PIDE com os serviços secretos franceses, com a Seguridad espanhola, o MI5 inglês, a CIA e por aí fora. Mas esses arquivos não estão totalmente disponíveis…

Mas estão em Portugal ou fora?
Essa é a questão. Quando comecei a investigação, parecia um rato à procura do papel [risos]. Sei que existem, e que estão em Portugal. Saíram da António Maria Cardoso e de Caxias para o Estado-Maior General das Forças Armadas. Não imagina a quantidade de emails que já lhes enviei. Há uma parte que foi descoberta, mas não está disponível porque ainda não foi trabalhada. O problema é que podem sempre alegar isso. Os historiadores têm a sua ética profissional. Não podem ser os arquivistas a decidirem o que vemos e não vemos. Só podemos chegar a mais conhecimento se tivermos mais acesso.

Tinha ficha na PIDE? Encontrou-a?
Andei à procura, não encontrei, mas sei que tinha, através de pessoas que estiveram na comissão de extinção. Não consegui ver o meu processo, mas vi-me noutros processos. Estive a ler o de um ex-camarada que desertou da tropa. Perguntaram-lhe pela “Rita”, ele tentou aldrabar, mas percebi que aquela “Rita” era eu. Como é que a PIDE não chegou até mim… Por isso, agradeço o 25 de Abril até hoje

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